Discos do mês - Abril de 2019
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

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Grace Francis é uma pianista inglesa sobre quem até outro dia eu nunca tinha ouvido falar. Foi numa sexta-feira de manhã cedo, de céu azul e um enorme alvoroço de passarinhos celebrando a chegada da primavera, que coloquei para tocar seu álbum Consolation, que traz sonatas de Brahms e Liszt. O encanto foi imediato. Uma das tantas formas de se descrever este disco — talvez não a mais lisonjeira, mas ainda assim uma forma bastante sincera de elogio — é perceber-lhe como um estudo de caso perfeito, o caso aqui sendo a incrível desenvoltura da pianista na execução da música, a extremidade final de um longo processo de compreensão e assimilação. Entre comentaristas e fãs de música clássica muito se fala sobre isso, sobre o domínio emocional do instrumentista acerca da obra que está sendo executada, a percepção das inspirações originais do compositor, do sentimento que este pretendia expressar, etc. Os grandes instrumentistas seriam aqueles que, além de dominarem a técnica, possuem também esta virtude sobre-humana de encarnar o espírito de outra pessoa, alguém muitas vezes falecido séculos atrás. Uma conversa muitas vezes bastante abstrata, de intenções puramente poéticas, como que querendo apenas ombrearem-se, as palavras destes comentaristas, à performance em questão, e não de fato descrevê-la. Acontece, porém, que muitas vezes esta é a melhor forma de se falar sobre um disco ou uma apresentação, e Grace Francis tocando a Sonata para Piano No. 3 de Brahms é um destes casos: a precisão e os tempos que percebemos tão naturais no primeiro movimento; a suavidade imperturbável do segundo; toda uma fluidez intuitiva ao longo dos cinco movimentos que nos faz perceber como a pianista sabe perfeitamente o que está fazendo, entende profundamente tudo o que está na partitura diante de si — o que está escrito explicitamente e também o que foi deixado implícito ou sugerido nas entrelinhas. Ao longo da audição da peça, o velho Brahms está ao nosso lado, ouvindo e aprovando. O Liszt de Grace é também muito bom; não tão bom quanto o de Martha Argerich, mas melhor do que o de Paul Lewis, por exemplo.
Ao contrário de Grace Francis, András Schiff eu já conhecia anteriormente. O Schubert de András é também um estudo de caso exemplar, tocado com grande sensibilidade e ternura, coisa de mestre. Em particular, os 4 Impromptus que abrem Franz Schubert: Sonatas & Impromptus, lançado há pouco pela ECM, estão primorosos em sua emoção controlada, recolhida, na medida exata que nos deixa a imaginar que estamos experimentando um pouco do que flutuava pela mente do compositor austríaco, do que embalava seus devaneios enquanto escrevia sua música. Tenho, encaixotado em algum lugar do outro lado do Atlântico — e espero que armazenado num lugar não muito quente —, um disco de Schiff tocando as Diabelli-Variationen de Beethoven, mas não lembro de ter gostado tanto daquele quanto gostei deste. Há outra coisa neste disco que me chama a atenção: o som do piano de Schiff me parece um pouco diferente, menos cristalino, como se cada tecla não ressoasse da maneira habitual — o austero e impositivo som que todos conhecemos — e fosse, pelo contrário, a sobreposição de dois ou três sons diferentes que deixam, no fim, um retrogosto meio metálico, e me perdoem se eu estiver falando bobagens, uma vez que compreendo muito pouco de técnica musical e instrumentos. A impressão, utilizando outra forma de dizer, é que o piano está se desmantelando! Essa imagem me surgiu logo no começo da audição e não me abandonou mais, seguiu me intrigando até o último movimento da sonata que fecha o disco, a linda D. 959. O que não significa que a coisa soe mal, pelo contrário: o efeito de uma performance caseira num piano não muito bom, algo espontâneo e sem grandes formalidades, é também muito agradável, conta pontos ao disco no fim das contas. (No livreto que acompanha o CD não há menção alguma a isso, a afinações incomuns, pianos desmantelando-se, nada disso… Provavelmente não é nada tão atípico quanto me pareceu, nada além da minha falta de conhecimento sobre o mundo dos pianos.)
E já que estamos por aqueles lados da paisagem musical européia, continuemos por lá mais um pouco, fazendo apenas um pequeno reajuste em nossos circuitos temporais para algumas gerações adiante: apesar de já escutá-los há anos, nunca deixa de me impressionar a música dos teutônicos mais doidões dos anos 1960 e 70 — e pelo visto eram incontáveis os teutônicos doidões nessa época. A música que faziam Neu!, Can, Amon Düül, Tangerine Dream, Popol Vuh, Cluster, Kraftwerk, entre muitos outros, é das coisas mais anárquicas e aventureiras dentre tudo que já escutei e continuo escutando nesta minha vida de melômano. Neu! e Tangerine Dream são bandas que escuto com muita frequência, enquanto que o Amon Düül teve sua época aqui comigo, mas depois deixei-os um pouco de lado. Vou reconduzi-los ao lugar que merecem, no entanto, depois de ter escutado este Phallus Dei uns dias atrás. A faixa Luzifers Ghilom é um protótipo das maravilhas e extravagâncias da vertente do, com a devida licença para usar este termo tão vago e algo pejorativo, krautrock praticada pelo Amon Düül: um rock estrondoso e galopante, cheio de vigor e juventude, que de repente, como que para implicar com os fãs de Led Zeppelin e Deep Purple que estivessem começando a gostar muito do Düül, de repente algo inesperado acontece e muda os rumos da música, deixando perdidinho da silva qualquer um mais acostumado com a previsibilidade das bandas inglesas e americanas. Eu também tive vários desses choques quando comecei a experimentar essas bandas alemãs, mas não demorou quase nada para a paixão ser selada. E o que dizer da faixa que fecha o disco e lhe dá nome? Uma delirante algazarra cósmica, selvagem e incansável, que torna a lisergia da primeira fase do Pink Floyd coisa de crianças comportadas, crianças de terninhos que adoram a rainha, adoram ler sobre o casamento do príncipe com a princesa, adoram chá com biscoitos, essas coisas tão inglesas. Tinha alguma coisa na água que se tomava na Alemanha naquela época; é a melhor explicação que consigo imaginar. Klaus Schulze, que foi baterista do Tangerine Dream por um breve período, deve ter tomado muito dessa água alucinógena: apenas comecei a desbravar sua imensa discografia e já topei com esse colosso chamado X., de 1978. Esse disco me impressionou muito. Se tivessem me avisado antes, de forma abreviada mas não tão imprecisa assim, que se trata de uma mistura de música eletrônica e orquestral, eu provavelmente teria ficado com os dois pés atrás e não me animaria a escutá-lo. Ainda bem que ninguém me falou nada, pois eu teria perdido um disco extraordinário! A coisa realmente funciona — é altamente ambiciosa, desavergonhadamente pretensiosa, mas funciona: uma longa e densa viagem que começa mais na base dos sintetizadores, teclados e bateria, nada tão radical assim, mas vai ficando cada vez melhor, e torna-se realmente incrível quando aparecem as primeiras seções de cordas lá pela quarta faixa. A sintonia é surpreendente e o disco ganha um vulto monumental. Tenho a impressão de que existe, hoje em dia, principalmente no trabalho de compositores de trilhas sonoras, uma nova corrente de música eletrônica misturada com música clássica, mas agora um tanto mais comportada e minimalista — nomes como Max Richter, Hans Zimmer e o falecido Jóhann Jóhannson, entre outros, são/eram os expoentes. Tem discos dessa turma saindo até pelo prestigioso selo alemão de música clássica Deutsche Grammophon. Escutei já alguns destes trabalhos e achei tudo muito soporífero, uma música meio molenga, inexpressiva. Há 40 anos Klaus Schulze já fazia algo muito melhor, muito mais excitante e arrojado.
Bem, agora eu planejava ir da Alemanha para o Brasil: sim, para o Brasil. Eu gosto bastante de algumas coisas da música feita no Brasil — música às vezes mais, às vezes menos originalmente brasileira, porém sempre com algum elemento de brasilidade, ou de algo que seja uma visão particular minha de brasilidade —, apesar de não escutar tão frequentemente e ainda menos vezes citá-la por aqui. Mas andei ouvindo algumas coisas que me fizeram ficar com vontade de tentar escrever uma ou duas ideias. Esse texto, contudo, já está longo demais; vou deixar para escrever sobre o Brasil e sua música depois, com mais tempo e mais espaço.
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