Dying Days
Seu browser está com uso de JavaScript desativado. Algumas opções de navegação neste site não irão funcionar por conta disso.

Discos do mês - Fevereiro de 2025

Fabricio C. Boppré |
Discos do mês - Fevereiro de 2025

Crédito(s): Manuel Göttsching e sua "banda" em foto de autor desconhecido, copiada aqui.

São poucos os compositores de trilhas-sonoras cujas obras para o cinema eu gosto de ouvir individualmente, como álbuns musicais mesmo, desacompanhadas dos filmes. Basil Poledouris (Conan the Barbarian, Robocop) é um deles; Jerry Goldsmith (First Blood, Gremlins, Poltergeist), outro. A grande maioria, contudo, acaba se revelando bem aborrecida quando você encara a audição de suas obras desatreladas dos filmes. Mesmo alguém do porte de um John Williams: é evidente que o tema do tubarão prestes a arrancar a perna de alguém e o tema do Darth Vader prestes a fazer seja lá o que for que ele fazia (eu sempre esqueço as tramas dos filmes da série Star Wars cinco minutos depois de tê-los assistido) são merecidamente icônicos e celebrados, mas as ocasiões em que experimentei escutar algumas de suas trilhas completas sempre me deixaram com a sensação de que faltou muito fôlego à Willians para compôr algo que permanecesse interessante por mais do que cinco minutos. Em geral as suítes se perdem em variações apressadas, os cortes abruptos que viraram clichês em filmes de ação/aventura, e aqueles trechos mais lentos e suaves que parecem obrigatórios à certa altura da exibição dos créditos no fim do filme. É como se o talento desses caras para criar um trecho ou vinheta inesquecível fosse proporcionalmente inverso ao talento necessário para uma obra mais longa e sustentada... Mas estou aqui para falar do que gosto, não do que não gosto: outro compositor que admiro, esse um pouco menos famoso, chama-se Mark Isham. Dias atrás revi um dos meus filmes marcantes da infância, Never Cry Wolf, e voltei a escutar a linda trilha-sonora assinada por Isham, que mescla orquestração tradicional mais abreviada (poucos instrumentos) e sintetizadores. É verdade que a coisa toda não chega a 25 minutos, mas mesmo que ela fosse estendida através da simples repetição das mesmas ideias, ainda assim ela teria minha admiração e carinho. É uma fraqueza já diversas vezes admitida por aqui: música de viés New Age ecológica, música que acaricia alguma parte antiga das minhas memórias. A New Age foi o som da humanidade em seu ponto máximo de ingenuidade, quando o futuro parecia promissor e tendíamos a pensar que tudo daria muito certo. Tudo tem dado muito errado, ao que parece, mas a culpa não é da New Age. (Também em fevereiro revi outro filme querido da infância, Point Break, também este musicado por Isham. Mas esta trilha é mais genérica, afetada talvez pela qualidade do filme, cujos diálogos são mais sofríveis do que a média dos blockbusters hollywoodianos: há uma conversa entre dois personagens em que um explica ao outro a origem do apelido "Bodhi" do personagem de Patrick Swayze, cena esta que me fez sentir um constrangimento tão profundo que, terminado o filme, temi não conseguir olhar ninguém nos olhos durante uma semana.) De resto, minhas audições em fevereiro foram variadas, desconectadas, em sintonia caótica com a transição entre férias e trabalho em que eu me encontrava: escutei ao dub dos Upsetters, ao metal anabolizado do Power Trip, ao rock inglês do Pulp (eu me lembrava desta banda como uma das poucas que eu tolerava do brit-pop, mas agora acho que nem isso). Thelonious Monk nos fez suas habituais visitas norturnas e aquele disco da Tara Jane O'Neil continua em alta rotação aqui em casa. Mas com atenção mesmo, além de Isham, escutei ao formidável EP Lifeline do Jesu — cuja faixa Storm Comin' On continua exercendo estranho fascínio sobre mim — e principalmente à obra-prima E2-E4 de Manuel Göttsching. Que música fascinante construiu Göttsching, ex-líder do Ash Ra Tempel. Eu já tinha escutado a este álbum algumas vezes antes, mas somente agora compreendi o motivo da veneração que tantos lhe dedicam. Não tem jeito: certos discos precisam ser ouvidos com fones de ouvido, o mundo externo bloqueado e a atenção 100% dedicada. Você deve permitir que a música lhe cerque e se transforme em sua realidade única e total. Com E2-E4, Göttsching construiu uma das tramas mais envolventes que já tive a sorte de escutar: a música não é muito exigente, como a de seus herdeiros Aphex Twin e Autrechre; o esteio eletrônico é básico e as figuras mélodicas que vão surgindo são igualmente simples e hipnóticas. É assim, sem grandes alardes, que o ritmo e a fluência da peça capturam o ouvinte e o deixam em repouso e encantamento. Mais adiante, o solo de guitarra com que Göttsching preenche a segunda metade da composição, meio blues, meio jazz, introduz algo de mais calor humano, porém ao mesmo tempo perfeitamente integrado às texturas eletrônicas, o que me parece um feito pioneiro e ainda hoje não superado. É Terry Riley com um toque de ficção científica; é música aventureira mas também descomplicada. É muito próximo da sublimidade que aspiram todos os maiores artistas.

Comentários:

Não há nenhum comentário.

(Não é mais possível adicionar comentários neste post.)