Discos do mês - Setembro de 2020
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:
Texto:
Shabaka And The Ancestors - Wisdom of Elders
Foi só eu escrever sobre a infrequência com que me ocorre descobrir coisas novas de jazz que me empolguem e me acontece exatamente isso, ou mais do que isso: descobri algo espetacular. Foi como se, inadvertidamente, eu houvesse invocado alguma magia ou código secreto, ou quem sabe ofendido alguma divindade musical demasiadamente melindrosa, que tratou de intervir… Foi também, na verdade, uma redescoberta, ou, para ser mais preciso, a retomada de uma descoberta — explicarei-me a seguir. O sujeito se chama Shabaka Hutchings, toca saxofone e possui uma penca de bandas e discos, e tudo que ouvi dele até aqui é sensacional. Mas devo começar pelo princípio; a história tem seus aspectos instrutivos, creio que vale a pena o relato. Tudo começou quando, já não me lembro mais por que caminhos ou recomendações, eu cheguei neste disco. Escutei a algumas de suas faixas com deslumbrada atenção e encomendei o CD com os camaradas da Brownswood Recordings. Isso foi em março, e não tornei a escutá-lo no computador: deixei reservada sua redescoberta e apreciação completa para quando me chegasse o CD (e por isso me esqueci completamente de Shabaka quando escrevi aquele texto no mês passado). Passou-se então março, abril, maio… Havíamos previsto a possibilidade de algum atraso no momento da compra pois o Covid-19 já andava por aí fazendo seus estragos, mas consideramos que ainda assim valia a pena, afinal, mesmo que desse tudo errado e o CD simplesmente se perdesse em meio ao caos da pandemia, ao menos já teríamos garantida sua versão digital e estávamos ajudando um pequeno selo independente, coisa que nunca me restrinjo em fazer. E passou-se junho, julho, agosto… Já dávamos a remessa como perdida quando, certa manhã, inesperadamente, o carteiro nos aparece com o CD, que se torna imediatamente um talismã aqui em casa. Temos escutado Shabaka e seus Ancestors com uma frequência quase maníaca: a música é incrível (mais ainda do que eu lembrava), cheia de rumores de transcendência e alegria, como se fosse a linguagem natural de uma irmandade antiquíssima, idioma e mitos transmitidos de geração à geração na perseverança inabalável que os permite enxergar adiante da tragédia deste mundo atual, ou então encará-la como alguma espécie de sacrifício necessário para uma próxima etapa, e é esta próxima etapa — a inevitabilidade de seu advento, ou de seu retorno, porque a impressão que se tem é que eles já a experimentaram antes em outras eras — é esta etapa ou novo ciclo, inexorável, o que eles cantam e celebram. Definitivamente, o reverso da presciência melancólica de Michael Hedges, cuja música não deixou de me fazer sentido, mas ganhou um pólo, digamos, uma voz antagonista. (Sobre a música do Shabaka and the Ancestors em si, eu não sei rotulá-la: tem muitos elementos de música africana, isso é evidente. Pouco importa; é superior.)
The Comet Is Coming - The Afterlife
Continuando o relato: desde que Wisdom of Elders enfim chegou aqui em casa, descobri mais outras coisas sobre o líder dos Ancestors, Shabaka, que para efeito de identificação mundana carrega também o sobrenome Hutchings. Descobri que ele tem uma outra banda chamada The Comet Is Coming, e a música desta é algo de outro naipe, ainda que igualmente extra-terrena. Se eu já não sabia rotular o Shabaka And The Ancestors, o The Comet Is Coming saberei menos ainda: nela há uma grande mistura de gêneros e convenções, e parece haver também bastante trabalho e esforço coletivo, o contrário da música eminentemente espiritual e intuitiva dos Ancestors. Talvez a coisa caiba no balaio de gatos do “fusion”, essa dissipação que em geral pouquíssimo me interessa (Chick Corea, Weather Report e similares), mas tampouco aqui esse manejo de vocábulos tem qualquer relevância. Creio que há ocasiões em que é importante “entender" o que se escuta, isso informa e enriquece a música, dá perspectiva histórica etc., porém, em outras ocasiões, o som exige apenas sua vivência plena, um espírito atento e presente, e certamente é este o caso do The Comet Is Coming. The Afterlife é extremamente empolgante e movido por um impulso que persiste no ouvinte durante horas, talvez dias. É música futurística para o corpo e para a alma. Shabaka Hutchings já tem minha gratidão eterna, e tenho certeza que para ele isso é mais valioso do que os poucos euros que remeti em troca do CD dos Ancestors. (Descobri ainda outras coisas sobre Shabaka, que deixarei aqui entre parênteses pois não concernem aos discos citados: nascido em Londres, é frequentemente alvo de comparações — infelizes; já explico — com o californiano Kamasi Washington, e talvez sim, talvez não, eu já o tenha visto em ação num palco pois ele fez parte por um breve período do Heliocentrics, banda que certa vez assisti ao vivo. Além do saxofone, Shabaka toca clarinete, e na infância morou por algum tempo na ilha de Barbados, cujos verdes e azuis eu tenho certeza que ainda são as cores predominantes em seus sonhos. No excessivo cinza de Londres, parece que Shabaka já é celebrado como uma espécie de herói, ao menos pela porção que não votou pelo Brexit, ou pela porção civilizada que não se preocupa com a cor das pessoas [o que, me parece, dá no mesmo]… Finalmente, sobre a comparação com Kamasi: talvez seja inevitável para alguns pontos de vistas, para a narrativa cultural ou para as esperanças comerciais, mas para mim é improcedente. Kamasi me parece mais ortodoxo, uma espécie de professor que, não obstante o bom coração, porta-se cheio de seriedade e rigorosidade, fala pausadamente sem olhar diretamente para aluno algum e não admite cochichos; Shabaka, no espírito dessa metáfora, seria o aluno brilhante e petulante que logo deixa a escola e vai se virar sozinho, desinteressado das métricas e dos conceitos — o que ele precisa saber ele já o sabe desde sempre.)
Andris Nelsons & Filarmônica de Viena - Beethoven: Sinfonia N. 4
Do sujeito que compôs a Quinta e a Nona não se poderá nunca dizer que sua melhor sinfonia é a número 4, ainda que talvez o pudéssemos se o nome deste sujeito fosse qualquer outro que não Beethoven (ou Mahler). Pois esta mera número 4 é também magnífica, um mar que dá uma vontade danada de subir num barco e ficar por lá navegando para sempre, singrando sem latitudes nem longitudes na vastidão sem fim, sem notícias da terra firme e muito menos dos países que se assentam sobre a terra firme. Ouço-a na versão gravada recentemente pela Filarmônica de Viena sob a regência do latão Andris Nelsons, como parte do meu calendário pessoal de homenagens aos 250 anos do nascimento de Beethoven. O infindável gênio alemão por certo não pensava em nada disso ao compôr suas sinfonias, em fazer delas veículos para que os homens do futuro pudessem alienar-se do mundo por alguns descansados minutos: ele não tinha como prever o insistente e cansativo — e, frequentemente, sanguinário — bater de cabeças que a civilização iria se tornar pouco a pouco. Se alguma intuição o levou à implacável gravidade da Quinta, outra posterior a anulou (e anulou a amargura da surdez progressiva) e o fez utilizar o poema Hino à Alegria de Schiller em sua última sinfonia. Esta quarta, em todo o caso, segue mais a linha celebratória da Nona: apesar do começo algo sombreado, não demora para que a música sofra (e nos transmita) uma espécie de estremecimento que a (nos) deixa fora do mundo por alguns segundos, com os olhos vidrados e a respiração suspensa, e logo a seguir tem início uma corrida agitada, uma aventura no limiar do exultante, o movimento de uma euforia ou a euforia de uma movimento capaz de fazer o ouvinte sentir-se compungido acaso perceba, subitamente, jamais ter sentido em toda a sua vida alegria equivalente à que Beethoven devia estar sentindo enquanto trabalhava nesta partitura, naquele longíquo mundo de 1806. Eu creio já ter experimentado algo parecido, portanto não posso certificar tal possibilidade, e até mesmo cogito o efeito contrário: talvez este sentimento inédito, recém descoberto, faça tal ouvinte entrar em êxtase ao ver nas paredes de sua casa a floresta encantada da música que invade seus ouvidos, e eu quase posso invejá-lo — creio que, de fato, invejo quem nunca escutou Beethoven com atenção e tem ainda diante de si a possibilidade desta descoberta, quem ainda está por desbravar o território desta floresta encantada, e também quem nunca escutou ao Laughing Stock do Talk Talk ou quem nunca leu aos poemas de Walt Whitman... Ser versado nestas obras e tê-las à disposição não pode ser tão melhor assim do que ser para elas um completo desconhecido, um cândido ignorante de suas plagas e alegrias, e, por conseguinte, um principiante e um novo aventureiro em potencial. Seria como preferir ser adulto a ser criança, coisa que ainda estou para ouvir algum adulto sensato dizer.
Lang Lang - Bach: Goldberg Variations
Na ária que abre a peça, Lang Lang não demonstra absolutamente pressa alguma, e isso, em geral, eu acho uma coisa boa. Uma coisa ótima. Mas não tem jeito: quem se apaixona pela partitura de Bach através das mãos miraculosas de Glenn Gould está fadado a não se contentar plenamente com a interpretação de mais ninguém. Junte-os todos: pegue os melhores pianistas a já terem encarado esta peça, coloque suas tentativas em um liquidificador e extraia delas o suco mais rico e saboroso que for possível, e este suco continuará sendo pouco mais do que água perto de qualquer uma das duas versões gravadas por Gould. É impressionante, é quase uma maldição: sempre haverá coisas fora do lugar, e compassos esquisitos, e hesitações, e toda sorte de pequenos vacilos ou má escolhas que os ouvidos adestrados por Gould não conseguem relevar. Não é uma questão de proficiência técnica ou de experiência: me parece que as Variações Goldberg são de Glenn Gould como peça alguma jamais pertenceu a um único intérprete em toda a história da música. Aos outros, restam o mérito da bravura e a disputa para ver quem está menos distante de Gould.
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