Dying Days
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Discos do mês - Agosto de 2018

Fabricio C. Boppré |
Discos do mês - Agosto de 2018

Eugen Jochum & Berliner Philharmoniker - Bruckner: 9 Symphonies

De forma longa e pacientemente planejada, regulada por limitações de dinheiro e de oportunidades, administrando com cuidado os espaços disponíveis nas estantes, refreando (com dificuldades) a ânsia infantil que ainda hoje experimento em tudo que diz respeito ao hábito de comprar discos — em suma: através de todo um difícil arranjo de circunstâncias e disciplina foi que eu adquiri, nos últimos tempos, três box-sets com as sinfonias completas de Beethoven, Mahler e Brahms, o trio de titãs imortais da música clássica. Não só isso: fiz também leituras prévias a respeito delas e downloads (ops, não contem para ninguém) de outras versões das mesmas obras, gravadas por outros maestros regendo outras orquestras, para fazer audições comparadas e eleger minhas favoritas, escutá-las até memorizá-las, tornar-me íntimo dessas epopéias tão fascinantes, tão míticas, muralhas que aparentam ser inexpugnáveis ante o desmoronamento de todo o resto. Beethoven, Mahler e Brahms não foram, obviamente, escolhidos ao acaso: conheço bem já algumas de suas sinfonias e sei que há ainda um universo imenso a ser desbravado em seus tantos e tantos movimentos e sons e experiências. Quão irônico — e educativo — será então o fato de que estou começando esta aventura de imersão sinfônica não por Beethoven, e nem por Mahler e nem por Brahms, por nenhuma destas tão acalentadas aquisições, mas por… Anton Bruckner? E olha que nem tenho CD algum com nenhuma de suas nove sinfonias; tenho apenas os arquivos digitais (arquivos lossless, claro) da caixa lançada pela Deutsche Grammophon reunindo as nove obras gravadas pela Berliner Philharmoniker sob a regência de Eugen Jochum, além de versões isoladas de uma ou outra em mp3. Bem, creio que alguma medida de imprevisibilidade, eventualmente, é impossível evitar que se infiltre nestes planos e altere o rumo dos acontecimentos. Deparei-me com uma gravação recente da sétima (essa aqui) umas semanas atrás, que acabei escutando e me deslumbrando, daí escutei outra, e li também alguma coisa a respeito da quarta (parece ser esta a obra-prima — "a nona” — de Bruckner)… E assim foi, uma coisa puxando a outra, de modo que agora estou escutando as sinfonias deste (também) alemão em sequência, atentamente, enquanto Beethoven, Mahler e Brahms aguardam na estante, resignados, ainda embrulhados em seus invólucros de plástico, talvez apenas um pouco magoados, embora seus orgulhos e empáfias teutônicas os impeçam de demonstrá-lo muito abertamente. Sim, eu vejo ali na minha estante de discos certos rostos, certas expressões, certos fantasmas, é coisa minha, nada muito psicótico e nem perigoso, eu espero. Bruckner, a figura, na minha imaginação tem feições bastante diferentes destes outros: esse nome me faz pensar em alguém grande, obeso, de gestos amplos, barba farta, algo debochado e depravado, um sujeito parecido com o Quint de Tubarão. Sei lá como ele era — provavelmente algo muito longe disso, já que não são muitos os registros históricos de pescadores beberrões que eram também grandes compositores eruditos nas horas vagas. O que sabemos é que suas sinfonias são essas coisas incríveis, cheias de climas e mudanças, verdadeiramente épicas, massas sonoras colossais movendo-se entre tempestades e placidez… Alternando tumulto e calmaria… Sim, sim, todos esses clichês. Perdoem-me. O negócio é que descrever sinfonias, tentar transpor para o mundo das palavras as imagens que estes sons evocam em nossas mentes, é muito difícil de fazer sem lançar mão destas expressões tão desgastadas, que nem sequer costumam ter o efeito na medida desejada, ainda mais nas mãos de um inepto como eu, então paremos de perfilá-las. Uma alegoria, no entanto, pode ser bastante eficiente; roubo uma de Mallarmé, o poeta que dizia que o mundo existe apenas para terminar em um livro: Bruckner tem me convencido de que o mundo, na verdade, existe apenas para terminar em uma sinfonia.

Roland Pöntinen, Torleif Thedéen & Stenhammar Quartet - Bergman: Music from the Films

São várias as efemérides importantes em 2018: os 100 anos da morte de Debussy; o centenário dos nascimentos de Ingmar Bergman e de Leonard Bernstein; os 50 anos do lançamento de 2001: A Space Odyssey. Costumo assistir ao clássico da dupla Arthur C. Clarke & Stanley Kubrick pelo menos uma vez por ano (*), embora este ano ainda não o tenha feito (não tardará). O tributo ao diretor sueco, por outro lado, venho prestando já há alguns meses, vendo e revendo seus filmes, e escutando este álbum chamado Bergman: Music from the Films, lançado pela BIS no mês passado. O repertório é fantástico e as performances de Roland Pöntinen (piano), Torleif Thedéen (violoncelo) e do Stenhammar Quartet são de primeiríssima. Não sei se todas as faixas escolhidas são obras (ou partes de obras) que figuram nas trilhas-sonoras dos filmes de Bergman, ou se algumas escolhas foram por afinidade, ou algo assim; é indiscutível, no entanto, como a coisa funciona bem. Por exemplo: as suítes para violoncelo de Bach (que aparecem no último filme de Bergman, Saraband, de 2003), as de número 2 em diante, costumam ser eclipsadas pela magnificência da primeira, que é uma daquelas melodias que mesmo quem nunca ouviu falar em Bach deve conhecer, de tão usada e abusada que é esta obra — já escutei-a até mesmo numa propaganda de construtora de edifícios aqui em Florianópolis, coisa de muitos anos atrás, e o pior, devo admitir, é que o efeito daquele comercial foi poderoso, pois ainda hoje me recordo das imagens de uma piscina refletindo um céu azul imaculado, quase que um espelho de tão lisa e brilhante, e famílias de feições escandinavas, sorridentes e despreocupadas, caminhando de mãos dadas pelas cercanias verdes do “empreendimento" que a tal propaganda anunciava com todo o cinismo e a indecência típicas da publicidade deste ramo de negócios. Sim, estas imagens eugênicas e falsificadas (é duro dizer isso; sinto-me como que num divã de psicanalista revelando alguma coisa muito suja e inconfessável) estão frequentemente entre as coisas que me vêm à mente quando escuto a suíte número 1, uma maldição ultrajante que nunca consegui extirpar, infelizmente, mas que ao menos ensinou-me bastante sobre o pouco controle que temos no que diz respeito às associações que são estabelecidas em nossas mentes, a arbitrariedade das relações entre música, imagens e recordações que construímos ao longo da vida, principalmente aquelas forjadas na infância. É uma escolha arrojada e muito acertada, ao fim e ao cabo, os curadores do repertório deste disco terem permanecido fiéis ao espírito de Bergman e incluído trechos das menos cotadas mas não menos belas suítes de números 2, 4 e 5 em seu tracklist e deixado de lado a número 1 — no conjunto, uma música magnífica que combina muitíssimo bem com os climas lentos e saturados de religiosidade herética dos filmes do mestre sueco, nascido 100 anos atrás, falecido há 11. Outros pontos altos são trechos de sonatas de Schubert e Scarlatti, além de um indefectível Chopin e de uma descoberta para mim, o quinteto para piano Op. 44 de Schumann.


() Tenho percebido que nos últimos tempos o juízo geral a respeito de 2001: A Space Odyssey vem se modificando: de quase unanimidade o filme vai se transformando, pouco a pouco, em extravagância antiga de gosto duvidoso, mesmo entre os cinéfilos mais sofisticados, e isso me surpreende bastante. Dia desses, conversando com um amigo, ele me dizia que não gosta do filme pois acha seus efeitos especiais e a maquiagem dos macacos e não sei mais o quê tudo muito defasado, risível até, o que comprometeria toda a obra… Fiquei boquiaberto diante dessa opinião, eu que nem me importo muito com essas questões técnicas, mas que achava (ingenuamente, pelo visto) que esse aspecto do filme ainda era um de seus prodígios, ainda não havia sido igualado em sua beleza e naturalidade, mesmo passado meio século de seu lançamento. Bem, talvez o incrível avanço tecnológico dos efeitos especiais tal como vistos nestes filmes contemporâneos de super-heróis, com seus cataclismas e apocalipses delirantes, que de tão rápidos e deslumbrantes mal permitem que o olho humano (ou, ao menos, o meu par de olhos já meio cansados) apreenda por completo aquilo tudo que está observando — talvez tudo isso esteja já enviesando a percepção das pessoas sobre o lento e hermético filme de Kubrick, quem sabe até mesmo inviabilizando sua apreciação e as reflexões que ele propõe… Não me vejo de modo algum como um conservador em termos de arte; se esta é a nova forma e a nova função do cinema, assim determinada por seus criadores e sancionada por seu público, por mim tudo bem. Na contramão deste novo consenso, contudo, minha paixão por 2001* não arrefece de maneira nenhuma.

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