Discos do mês - Setembro de 2015
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:
Texto:
Eu vinha ouvindo muito jazz no mês anterior, descobrindo coisas novas e redescobrindo outras às quais eu nunca tinha dado a merecida atenção. Jazz é o tipo de música que abduz o ouvinte das esferas cotidianas da vida e seus problemas mesquinhos, mesmo quando você está em modo dead air, pois a música fica um tempo ainda reverberando na cabeça e dando um ritmo diferente aos nossos diálogos internos, nos faz ver o mundo de forma um pouco mais empática, algo muito valioso nesses dias de hoje. Mas aí veio o dia 4 de setembro, o novo Maiden foi lançado e isso tudo foi por água abaixo. Desde aquela sexta-feira em que fui de manhã cedo ao centro da cidade e fui o quarto a comprar o disco (tive a curiosidade de perguntar ao meu amigo Gota, dono da melhor loja de discos de Florianópolis, quantos antes de mim já tinham ido lá fazer a mesma coisa), desde aquela sexta-feira de céu nublado e chuva leve até o momento em que escrevo isto aqui (dia 20 de setembro), acho que foram apenas dois ou três os dias que passei sem ouvir ao The Book of Souls. E, dessa vez, prestei atenção especial ao processo de desgustação do disco, ao desenvolvimento gradual da afeição e do desvendamento das melodias e dos detalhes, e o compreendi como uma espécie de massagem da memória que se torna pouco a pouco viciante por via de um prazer endorfínico que suponho ser similar ao experimentado pelos viciados em correr, mas que no caso aqui descrito de um disco do Iron Maiden, não te leva de um ponto a outro da cidade, nem a ficar mais magro ou mais relaxado, mas sim, conduz daquele primeiro contato meio confuso e talvez até mesmo meio frustrante com essa massiva hora e meia de guitarras e uivos e nomes de músicas que são um clichê atrás do outro até finalmente ao ponto do puro entusiasmo juvenil com essa maratona de música intensamente lúdica e teatral, quando enfim você já estará calculando em qual posição merece ficar o disco em seu ranking pessoal da discografia da banda, e você já saberá de cór o nome das músicas e sua ordem no tracklist e já terá definidas suas faixas preferidas e quais entram no seu hipotético best of CD-triplo do Iron Maiden1. E talvez seja este também um bom momento para dar uma pausa e retornar à vida adulta.
Por sorte, hoje em dia o cardápio é vasto e variado o suficiente para que você possa se identificar sem constrangimentos como um fã de metal, mesmo tendo já passado dos 30 anos. Nada contra a dedicação leal ao Iron Maiden, ou ao Metallica, ou ao Motörhead --- e para quem eventualmente não tenha isso bem resolvido consigo mesmo, uma tentativa razoável de elucidar a fascinação de uma vida pelo Maiden pode ser lida aqui --- porém me parece improvável que o sujeito que percebe, em algum momento, que a música será algo importante em sua vida, não venha a sentir absolutamente nenhuma curiosidade em ir além e procurar por coisas um pouco mais elaboradas e que não tenham na recreação escapista seu único propósito. Essa curiosidade deve fazer parte até mesmo das premissas biológicas e darwinianas, leis que todo mundo deveria respeitar, mesmo a turma predominantemente conservadora2 fã de música pesada. Eu, pelo menos, respeito-as diligentemente, e dentre as coisas um pouco mais "adultas" que andaram tocando aqui nos meus fones e caixas de som, nesse mês que foi essencialmente um mês ouvindo metal, destaco o Earth Ground dos poloneses do Thaw e o Melana Chasmata dos suíços do Triptykon. Esse último, em particular, é um verdadeiro portento; lembro dele ter causado bastante alvoroço nas comunidades metaleiras on-line no ano passado, quando foi lançado, e depois encabeçou muitas listas de melhores do ano, mas só umas semanas atrás é que fui escutá-lo, e sim, ele é tudo isso, é realmente magnífico. O do Thaw é também um assombro: a categorização inevitável os associa ao insidioso black metal, mas nada de bodes degolados e outros truques de circo de terror escandinavo aqui; há um senso de experimentação e de arte verdadeira guiando essa banda, fúria e arte brotando de uma mesma fonte espiritual, para além da mera vontade de chocar e de soar extremo. Vale a pena experimentar.
Por fim, comentário rápido sobre a Chelsea Wolfe, só para atar a ponta que tinha ficado aberta no relato do mês passado. É realmente fantástico este Abyss, mais denso e um pouco menos tétrico do que o Pain is Beauty, mas igualmente hipnótico e encantador. É para ouvir de madrugada, naquela quietude profunda das altas horas, a penumbra silenciosa que parece se dedicar inteiramente a testemunhar que você é a única pessoa acordada no mundo inteiro. Minha suspeita já se transformou em certeza: é meu disco favorito de 2015.
1 Se algum maidenmaníaco estiver me lendo e ficar curioso, o meu ranking atual mostra o The Book of Souls no sétimo lugar, logo acima do Brave New World e logo abaixo do Killers, e no meu best of não faltariam If Eternity Should Fail, The Great Unknown, When The River Runs Deep e Shadows Of The Valley. É, talvez tenha que ser um álbum quádruplo. ↩
2 Mesmo contrariados, temos que concordar com isso. Mas, ao mesmo tempo, o metal --- a música do tinhoso --- desperta a ira da turma conservadora mais radical, de vertentes religiosas; aí sim nós metaleiros mais liberais temos motivos para nos orgulhar de nosso clã! ↩
Comentários:
Cara, você falou que andou ouvindo jazz. Já ouviu o 'The Epic', sensacional álbum do Kamasi Washington? É o meu disco preferido do ano, vale muito ouvir.
Abs
Não, Ricardo, não ouvi e nem conheço Kamasi Washington. Vou procurar, obrigado!
Caramba, é realmente um épico: disco triplo e uma capinha maravilhosa. Agora minha curiosidade explodiu. Vou dar um jeito de ouvir isso hoje!
"E talvez seja este também um bom momento para dar uma pausa e retornar à vida adulta."
Esse momento existe? hehehehe
Talvez ele seja efêmero demais para ser considerado real... [risos]
Vicente: o Thaw, que eu comentei acima, acaba de lançar um disco novo, e eu acho que devias dar uma escutada: https://thaw.bandcamp.com/album/st-phenome-alley-2
Obrigado pela dica. Hei de conferir.
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