Dying Days
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Discos do mês - Agosto de 2015

Fabricio C. Boppré |
Discos do mês - Agosto de 2015

Miles Davis: In a Silent Way

Andei descobrindo umas coisas fascinantes em matéria de jazz nas últimas semanas: John Surman, Jan Garbarek, Keith Jarrett, Ralph Tower. O norueguês Garbarek, cujos discos saem pela cultuada ECM desde 1970, é incrível e não deve demorar a aparecer aqui nas minhas divagações, porque começo a sentir o nascimento de uma empatia total pela obra do cara --- a cada disco que escuto, dobram meu deslumbramento e minha curiosidade, e o que começou como um convite meio circunspecto e misterioso já se transformou em algo mais próximo à compulsão, o vício na adrenalina experimentada durante a exploração destas novas dimensões cujas maravilhas eram até então apenas intuídas, e cuja ameaça nem um pouco desprezível é ser uma jornada sem retorno. Até aqui foram três ou quatro discos, e foram todos devidamente anotados em minha lista de futuras aquisições (sim, por enquanto, estou só na pirataria). Mas foi mesmo o bom e velho Miles quem mais tocou nas caixas de som aqui de casa nesses últimos tempos. Comprei recentemente o In a Silent Way em CD, e quando retirei-o do plástico e o escutei pela primeira vez, antes de tudo fiquei pasmado com a assimilação do fato de que eu passei todos esses anos ouvindo esse disco apenas esporadicamente, e a partir de arquivos digitais vagabundos, ainda por cima. É um disco extraordinário, o gênio Miles Davis desbravando mares e indo além, desbravando profundidades e altitudes outras cuja cartografia infinita é puro som, ecos e reverberações. Vocês já devem ter percebido que não uso "gênio" à toa, certo? Pois Miles foi gênio, pleno e incontestável. Sempre tive uma predileção pelo Coltrane, pela figura ascética e de ares perdidamente contemplativos do Coltrane, um homem que parecia presciente do fato de que seria beatificado e cultuado em igreja assim que morresse, o que, para emprestar ainda mais força ao mito, não tardaria a acontecer, e essa consciência o fez preservar-se para esta futura vida santa incorpórea, enquanto que Miles foi se tornando excêntrico com o passar do tempo, com seus paletós e óculos bizarros, e sempre escutei mais, de fato, aos discos do Coltrane. Mas ultimamente só dá Miles. Ele foi mais longe, teve tempo e audácia de fazê-lo, e sua obra parece inesgotável: apenas rocei de leve o pé no rio fervilhante dos discos elétricos da última fase de sua carreira (fusion, como dizem os entendidos), que começa na segunda metade dos anos 60 e tem como primeiro clássico justamente o In a Silent Way, e depois se seguem outras maravilhas como Bitches Brew, Jack Johnson, Pangaea, On the Corner, Agharta e Dark Magus. Mas vamos com calma! Ainda estou sob o encanto e apreciando diariamente ao In a Silent Way.

Chelsea Wolfe: Pain is Beauty

Bastou uma única escutada no novo da Chelsea Wolfe, Abyss, para descobrir ali um disco fantástico, provavelmente o meu preferido de 2015. Duvido muito que apareça algo melhor esse ano. A segunda audição me fez cogitar seriamente a possibilidade dele ser ainda melhor do que o Pain is Beauty, e neste ponto resolvi retornar a este álbum, com quem eu tinha um assunto não-resolvido, a pendência incômoda que certos discos ocasionalmente fazem nascer em minha consciência de não tê-los escutado o suficiente, e acabou que fiquei preso nele, ouvindo-o também numa base diária, tentando identificar ligações de irmandade músico-espiritual entre Miles e Chelsea para poder ouvi-los em sequência, invertendo a ordem às vezes, outras experimentando alguma coisa no meio, drones, ambients e jazz diversos. Difícil dizer qual dentre estes dois últimos discos de Chelsea é melhor; ambos possuem essa qualidade de difícil descrição, uma certa continência taciturna conjurada pela economia de recursos e pelos compassos insólitos, uma música cuja essência parece ser estar o tempo todo aberta ao inesperado e onde cada linha de som parece emergir seguindo alguma lógica enigmática, extraterrena, sons puros e singulares que então cedem repentinamente --- se apagam, submergem, morrem uma morte gélida e sem deixar traços. E então voltam a emergir do grande e implacável vazio. Esse vazio é também ele próprio elemento fundamental nesta música, vácuo e fragmentos de silêncio que vão contribuindo para a sensação vaga de rarefação, de coisas fora do lugar. Se há algum contraponto a tudo isso, este acaba sendo a voz de Chelsea, que é rigorosamente comum em seus predicados naturais, mas que ela manipula com destreza e simplicidade magistrais, ecos sutis, distanciamentos e prolongamentos que consubstanciam a beleza etérea da coisa toda. No momento, o Pain is Beauty ainda é o meu preferido, mas o Abyss e sua linda capinha estão ali na estante em posição de destaque, esperando pela noite que eu e ele sabemos que há de vir, em que eu vou escutá-lo novamente e então não vou parar mais por alguns dias e tentarei novamente escrever sobre coisas muito difíceis de explicar.

Alice Coltrane: Transcendence

Certa vez um amigo me disse que considerava música a forma de arte menos importante dentre as mais populares. Ela seria inferior ao cinema e à literatura, na escala hierárquica deste meu camarada. Bem, eu acho que esse disco da Alice Coltrane é a prova irrefutável. (Prova do contrário do que ele disse, evidentemente.)

Comentários:

Vicente | 04/09/2015

Putz, três ótimas escolhas.

Não curti muito o Abyss, digo, não achei tão viciante. Na verdade, a Chelsea tá começando a se repetir, embora ela não seja uma artista com tendência a se acomodar numa zona confortável. Acho que é o tipo de som, é difícil lá pelas tantas dar um salto a cada nova iniciativa.

Silent é o meu Miles preferido. Acho, hmmm, lindo.

E talvez a Alice seja minha jazzista preferida, talvez pelo fato dela transcender os meus conceitos de jazz. É meio que um percurso espiritual-oriental, a música dela instiga canais de percepção que praticamente só ela consegue.

Fabricio | 08/09/2015

Cara, já fiz a transição para o Abyss e estou deslumbrado com o disco. Maravilhoso.

Fiquei curioso: por que o titubeio antes de dizer que o disco do Miles é lindo? O disco é lindo e belo, como dizia uma tia minha vendo novela, enquanto suspirava pelos galãs... [risos]

Vicente | 08/09/2015

Titubeei porque não sabia se "lindo" é o termo que melhor o define. Mas acho que é sim. O que eu gosto no Miles é que ele, mesmo nos momentos mais contemplativos como esse Silent, não consegue conter sua necessidade de explorar os instrumentos e melodias com incorrigível arrojo. Há uma certa selvageria intuitiva na música dele, o que muitas vezes dá ares monótonos a muitos de seus contemporâneos.

Fabricio | 08/09/2015

Ah, beleza! Achei que era aquele velho pânico dos gaúchos diante de qualquer lapso que possa pôr em dúvida sua masculinidade... [risos]

Fabricio | 08/09/2015

Ah, e esqueci de acrescentar antes: estás precisamente correto em relação à Alice Coltrane.

Vicente | 08/09/2015

hahaha

Realmente, a forma como escrevi abriu margem para sua interpretação.

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