Discos do mês - Setembro de 2022
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

Crédito(s): Sarah Davachi em foto de Sean McCann, copiada daqui.
Texto:
Sarah Davachi - Two Sisters
Estava eu apenas na segunda faixa deste disco quando decidi inscrevê-lo em minha pré-lista de melhores de 2022, e antes mesmo de finalizar esta primeira audição eu já sabia que dificilmente ele deixará de estar na lista final. As duas pequenas e frágeis vozes de Alas, Departing (a tal segunda faixa), abstraídas em seu cantarolar de desterro, de solidão, de abnegação completa, instilam compaixão e humanidade, e o álbum como um todo soa como a concepção meticulosa de uma hipótese: como seria um mundo que tendesse em direção contrária à histeria, à violência, à hostilidade? Escutar aos 90 minutos de Two Sisters é um exercício de atenção e contemplação, um exercício similar à observação da luz natural incidindo sobre as coisas e mudando suas cores, do tempo sendo inscrito sobre a própria pele.
Cult - Hidden City
Um novo Ian Astbury reconfigurou-se em minha mente após a leitura de seu Baker's Dozen na The Quietus, bastante diferente da imagem que eu fazia dele baseado apenas em fotografias e nos esteriótipos mofados do rock ’n’ roll. Apesar de adorar o Cult, sempre imaginei Astbury um rock star do tipo mais pedante e pretensioso, alguém que, se eu viesse a conhecer melhor, dificilmente evitaria que minha afeição pela banda diminuísse um pouco. Foi portanto uma grata surpresa a leitura deste relato sobre seus discos favoritos; não que ele agora me afigure o ser humano mais frugal e gentil do mundo — o sujeito, afinal, usa gorros feitos de peles de animais —, mas seu entusiasmo pelos discos e artistas mais importantes de sua vida (Patti Smith, Jim Morrison, Lou Reed, entre outros) é tocante e genuíno, e não desprovido de um certo tipo de inocência que acho bastante saudável quando nós adultos conseguimos conservá-la, em doses adequadas, desde nossas adolescências, algo que suponho ser um dos segredos para a longevidade mental: a capacidade de sentir encanto, reverência, deslumbramento. Desconfio que Ian Astbury vá viver por bastante tempo ainda. Essa leitura me estimulou a escutar bastante Cult nos últimos dias, principalmente aos discos mais recentes aos quais eu nunca havia dado a devida atenção, e acabei descobrindo em Hidden City, de 2016, um disco que os torna dignos candidatos ao seleto grupo das bandas de rock formadas nos anos 80 e que ainda têm razão de existir. Vamos ver se Under the Midnight Sun, que sai agora no começo de outubro, confirma minha impressão.
William Ryan Fritch - Ill Tides
Apesar de um e outro cacoete de trilha sonora de filme contemporâneo (tenho birra), Ill Tides é um disco muito bonito. Entrelaçando instrumentos acústicos mais tradicionais em uma fina malha de sons manipulados e distorções elétricas, William Ryan Fritch cria uma música cujo poder de evocação é praticamente irresistível. Há de ser uma experiência distinta para cada um, mas eu, que provavelmente assisti a filmes de terror e westerns demais, nas muitas vezes em que escutei a Ill Tides nestas últimas semanas sempre me via imediatamente transportado para o meio de paisagens elementares alvejadas pelo tempo e suas intempéries, cores incomuns brilhando no horizonte, os vestígios de antigos mistérios rachando e desbotando-se sob o sol. Surgindo das profundezas do tempo, vozes distantes de seres que tiveram seu direito de existir revogado fazem-se ouvir, prevenindo-nos acerca de nosso próprio futuro… E por aí vai. Música para reverenciar com calma, no fim da tarde. Muito bonito, mas é claro que eu não contestaria alguém que dissesse que William Ryan Fritch não é Harold Budd; certamente ele não é. Para alcançar algo parecido com a concentrada carga espiritual da música de Sarah Davachi — o tanto que ela faz com tão pouco — ele também precisa de um pouco mais de estudo e inspiração. Mas melhor do que Max Richter e do que o falecido Jóhann Jóhannsson (para citar dois aclamados compositores contemporâneos) eu já acho que ele é de sobra.
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