Discos do mês - Março de 2023
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

Crédito(s): Kali Malone em foto de autor desconhecido, copiada daqui.
Texto:
Stereolab - Transient Random-Noise Bursts with Announcements
Ah, a brevidade da vida. Não fosse essa coisa tão ligeira e tumultuada e eu certamente acabaria por me tornar íntimo de toda a discografia do Stereolab, memorizaria todas as suas faixas e suas letras, até mesmo aquelas cantadas em francês, todos os pedacinhos de som, tudo. Porque é uma banda que adoro muito, mas, por esquecimento ou preguiça ou sei lá que outra deficiência, acabo escutando muito pouco, e muito superficialmente — quando ouço, é quase sempre aos arquivos mp3 que tenho no computador (dois CDs são as exceções), decalques vagabundos sobre os quais posso dizer com segurança, mesmo sem ter escutado aos CDs originais, que apenas uma parte da riqueza sonora da banda foi preservada neles após a ceifa promovida pelos processos de conversão. Mas cuidarei para que Transient Random-Noise Bursts with Announcements seja uma exceção a esta injustiça: ele merece estar em uma zona superior a esta dos discos que escuto somente quando dou casualmente com os olhos sobre eles, uma multidão digital que começa a tender ao amorfismo. Porém preciso primeiro comprar o CD. Daí sim, finalmente, irei escutá-lo até que ele se junte aos muitos outros já incorporados à minha corrente sanguínea.
… And You Will Know Us By the Trail of Dead - Source Tags & Codes
Amei profundamente esse disco lá pelos idos de 2002, 2003, a época de seu lançamento. Depois tomamos caminhos divergentes, como às vezes acontece mesmo às melhores amizades, e acho que fazia mais de dez anos que eu não o escutava. Ocorreu, contudo, de nos reencontramos uns dias atrás, e embora Another Morning Stoner e How Near How Far continuem inquestionáveis triunfos do espírito sobre a matéria, algumas (não poucas) outras coisas neste álbum me parecem não estar envelhecendo lá muito bem. As guitarras ultra-saturadas de It Was There That I Saw You, por exemplo. Fico imaginando quem terá sido o sujeito que, no estúdio de gravação, achou que aquilo seria uma boa ideia. Parece-me um destes lances que, na mente de seu inventor, na empolgação do momento, se afigura revolucionário, audácia genial que a posteridade louvará como divisora de águas, um novo estágio na ascensão visionária de Jimi Hendrix, nas estripulias em estúdio iniciadas pelos Beatles em Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, o Trail of Dead como inaugurador de uma nova fase nos eternos ciclos que animam os movimentos artísticos… Só que não. Passados uns anos, é apenas cansativo. Senti ainda outros excessos similares ao longo do disco… Mas chega na faixa final e fica tudo perdoado. Eu não havia me esquecido. Source Tags & Codes continua lindíssima, uma canção que sempre me comoveu e continua comovendo intensamente, tanto na forma como sua desolação é evocada sonicamente quanto é representada em palavras, uma coisa substanciando a outra, mobilizando sentimentos que, desconfio, todos possuímos em diferentes graus resolvidos ou mal resolvidos dentro de nós. Quando Conrad Keely canta sobre “what's behind that hill”, desconfio que todo mundo compreenda perfeitamente sobre o que ele está falando, ainda que adultos plenamente saudáveis e funcionais talvez não o admitam. Se algum dia eu conhecer algum, eu pergunto.
Kali Malone - Living Torch
Certos discos, aos primeiros sinais de suas chegadas ao mundo, é possível rapidamente perceber que estão destinados a serem incensados e paparicados, mesmo antes de terem sua música revelada. Tomemos o exemplo do recém-lançado Does Spring Hide Its Joy de Kali Malone: a estética da arte gráfica; a ousadia das três faixas de uma hora de extensão cada uma delas; o título e seus ares metafísicos; a participação de Stephen O’Malley. Faltava pouco, quase nada — talvez de fato não faltasse nada mais — para sabermos que o disco seria enaltecido e ganharia notas altas nos sites que gostam de dar notas. Bingo: aí estão o deslumbramento e os chavões. Calhou de Kali Malone não decepcionar a turma que já tinha decidido que o disco era bom — ele realmente é. Porém, neste momento em que este tipo de música já anda bem espalhada por aí e não representa mais nenhum grande radicalismo ou novidade, não se pode dizer que há muita originalidade em Does Spring Hide Its Joy. Não que isso seja uma exigência, mas tenho a impressão que Living Torch, o álbum anterior de Malone, prometia mais. Seus econômicos 33 minutos me encantam bem mais do que as três horas de Does Spring Hide Its Joy, e não é uma questão deste último ter dificuldade em sustentar a atenção, pois nisto ele é eficiente, o fluxo de suas composições, amparado principalmente pelos instrumentos eletrônicos de Kali e o violoncelo de Lucy Railton, absorvendo e surpreendendo constantemente o ouvinte em seus movimentos imperceptíveis, que se dissolvem uns nos outros, algo que se assemelha aos movimentos dos corpos celestes no céu noturno: quase não podemos acreditar neles, mas eles ocorrem, as evidências demonstram, e Kali, boa discípula como há de ser de Éliane Radigue, os compreende e sabe manejá-los. Does Spring Hide Its Joy é bom, é eficiente, é hipnótico, mas acho que não consigo dizer muito mais do que isso. Living Torch, por sua vez, abriga mais segredos, surpreende e assombra com mais frequência, e guarda em si o pacto de que o melhor de Kali Malone ainda está por vir.
Majesties - Vast Reaches Unclaimed
Esta foi uma ótima surpresa, que ainda por cima se desdobrou em boas lembranças e redescobertas: seguindo a recomendação do bandcamp, experimentei esta nova banda chamada Majesties e de imediato gostei do som, e quase tão rapidamente relembrei dos primeiros discos do Dark Tranquillity, e depois, agora sim com um pouco mais de vagar enquanto apreciava Vast Reaches Unclaimed, me dei conta de que gostava bastante daquela cena de Gotemburgo nos anos 90, os primeiros discos do In Flames, do At the Gates, do mencionado Dark Tranquillity, discos que eu comprava gravados em fitas cassetes de um camarada paulista que vivia disso, gravar CDs de metal em fitas e, no verso da capa impressa em impressora matricial e enfiada na caixinha de acrílico, escrever à caneta os nomes das faixas e das bandas que ele incluía como bônus nos minutos que sobravam nas fitas, e às vezes essas faixas bônus interrompiam-se abruptamente com o fim do espaço e eu detestava isso, mas acho que nunca disse isso a ele e nem vou poder dizer pois ele infelizmente já faleceu. Eu escutava àquelas bandas suecas e gostava bastante, mas não ficou nada muito sedimentado em mim, e há muitos anos não volto a elas — o In Flames, em particular, logo se transformou em algo que pouco me interessava, e sobre as outras bandas quase não tenho mais notícias. Mas foi uma boa lembrança essa suscitada pelo Majesties. O movimento e a evolução incessante do metal (em contraste insólito com o reacionarismo e o racismo de boa parte das pessoas que fazem parte dele) me interessam bastante, mas às vezes essas reciclagens são também bastante bem-vindas.
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