Dying Days
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Discos do mês - Maio de 2024

Fabricio C. Boppré |
Discos do mês - Maio de 2024

Crédito(s): György Ligeti em foto de autor desconhecido, copiada daqui.

Big|Brave - A Chaos of Flowers

Eu costumo me empenhar bastante em meu relacionamento com minhas bandas mais queridas, em escutá-las com atenção e compreender e criar laços com seus discos. Excluídas as relações humanas diretas (e não necessariamente por preferência), é possivelmente este o cultivo ao qual mais dedico tempo em minha vida. Mas desta vez falhei com o Big|Brave. Escutei apenas duas ou três vezes ao Nature Morte, lançado no ano passado, o que bastou para inseri-lo em minha lista de favoritos de 2023, porém nem de longe a dedicação que este disco merece. Tinha portanto este álbum ainda em meus pensamentos, a necessidade pendente de escutá-lo mais vezes com mais atenção quando de repente, poucos dias atrás, sai A Chaos of Flowers, novíssimo disco do Big|Brave. Não resisti à tentação e pus-me a escutá-lo, ignorando a voz interior que me alertava de que isso configuraria uma traição ao Nature Morte... Minha sorte é que A Chaos of Flowers é outro colosso cuja eletricidade exuberante expurga e perdoa. Tenho uma impressão sobre a música que o Big|Brave produz. Eles não exatamente a produzem: eles domam um jorro sonoro, tentam controlá-lo, respeitosos e um pouco atemorizados, incertos da natureza daquilo com que estão lidando. Na maior parte do tempo tem-se a impressão de que estão no comando; em alguns momentos, nem tanto. Fico imaginando: se o som gravado e escutado na segurança de casa já produz efeitos que ressoam no fundo dos ossos, o que será que se passa em estúdio? E em uma apresentação da banda? Deve ser formidável. Algum dia voltarei ao Nature Morte (não esquecerei), mas por ora A Chaos of Flowers tomou seu lugar. Só espero que agora aguardem um pouco antes de lançar um novo disco.

Danny Driver - György Ligeti: The 18 Études

Esses estudos para piano do Ligeti sempre me surpreendem e fascinam. O pianista desta versão que tenho escutado, o inglês Danny Driver, navega com habilidade de tirar o fôlego por todos os registros exigidos por Ligeti, dos mais graves aos mais agudos, executando transições complexas e vertiginosas com uma fluidez e uma naturalidade que quase vulgarizam o instrumento e a perícia exigida para seu manejo, como se fosse algo que qualquer um pudesse fazer. Veja bem: pouca gente poderia meramente imaginar estes sons, o que dizer então de lê-los e executá-los. As notas sólidas e retumbantes que engolem o ouvinte; as cristalinas e insidiosas, que cintilam como enigmas sonoros; o drama incessante entre estes extremos produz uma experiência musical visceral, daquelas cuja origem e materialidade — a mente de seu compositor e a habilidade de seu intérprete — deixam o ouvinte desnorteado em conjecturas a respeito do bicho assustador e prodigioso que pode ser o ser humano e do quanto de coisas é possível que ele armazene em si.

Cocteau Twins - Four-Calendar Café

Dia desses entrei em uma loja de discos com a esperança não de todo descabida de encontrar este disco do Cocteau Twins em vinil. Encontrei-o e paguei feliz da vida os 350,00 reais pedidos nele. Sim, 350,00 reais, muito dinheiro. Rico eu não sou; irresponsável, um pouco, mas deixem-me explicar. Em primeiro lugar, a citada loja é a Roots Records, local que frequento há mais de 30 anos (sei disso pois comprei lá o In Utero na semana em que foi lançado, e muito provavelmente já havia comprado outros discos antes) e onde sempre me sinto em casa. Localizada em uma galeria de lojas absolutamente irrelevantes (excetuando a banca do caldo de cana, que é o melhor da cidade), em pleno calçadão principal do centro de Florianópolis, a Roots já deve ter tido mais de 50 lojas de roupas diferentes como vizinhas de cada lado, enquanto ela permanece lá, resistente e valorosa, sobrevivente de fé das crises econômicas, transições tecnológicas e pandemias. O dono me confidenciou certa vez que esteve prestes a fechar as portas por volta de 2017, mas com a ajuda de alguns amigos conseguiu manter o negócio, e hoje a coisa segue em frente aproveitando o retorno dos vinis e a venda sempre aquecida de camisetas e acessórios. A garotada frequenta depois do colégio, além dos dinossauros (tipo eu) de sempre. Vou logo me declarando: eu amo a Roots Records, sou muito grato ao casal de donos (e aos tantos filhos que vi crescerem atrás daquele balcão e agora dão uma força aos pais no atendimento) pela perseverança e por propiciarem aos poucos que ainda se importam um destes espaços mágicos que são as lojas de discos. A variedade dos vinis novos lá é surpreendente — quantas são as cidades no Brasil onde você pode entrar em uma loja pensando em um disco do Cocteau Twins e encontrá-lo? As pilhas de CDs (obviamente bem mais em conta) me dão aquela tranquilidade do toxicômano que precisa sentir o maço de cigarros no bolso: uma ida ao centro nunca será de todo infrutífera. Por tudo isso tenho o dever de prestigiá-los e recompensá-los sempre que puder. Em segundo lugar: ando apaixonado pelo Cocteau Twins e Four-Calendar Café é meu disco favorito. Eu pagaria R$ 350,00 exclusivamente pela faixa Summerhead, mas o álbum todo é fascinante, é daqueles que a gente deixa reservado para ouvir nas noites mais especiais, quando a música que escutaremos não pode ser menos do que todo o acúmulo de vida que nos levou até aquele momento. Oras, se 350,00 reais não servem para isso, para que mesmo servem?

Comentários:

Ivan Jerônimo | 10/06/2024

Bela postagem. Me trouxe lembranças da Roots e de Cocteau Twins (e vou atrás de Big|Brave e de György Ligeti).

Conheci a Roots lá pelos idos de 91 ou 92, quando ainda funcionava lá em cima no Shopping Point e vendia quase só vinis. Na época heavy metal tava na moda e acho que era o que dava mais saída. Mas lembro de um disco de capa branca do Kraftwerk que nunca mais vi, parecia um EP. Tinha muitos vinis que eu comprei lá, e até hoje lembro do cheiro da loja.

Cocteau Twins era uma daquelas bandas que eu conhecia só pelas resenhas da Bizz e que não tinha como ouvir – não se encontrava pra vender e eu ainda não tinha aparelho de CD para poder alugar. Um colega de faculdade tinha o Heaven or Las Vegas, mas eu não tinha intimidade para pedir emprestado. No fim, só fui ouvir CT – por MP3 – há não mais que quinze anos e virei fã. Providencial seu post porque agora vou ouvir o Four-Calendar Café com atenção.

Assistiu ao filme “Califórnia”, dirigido pela Marina Person? Tem uma cena linda em que toca Beatrix.

Fabricio | 10/06/2024

Ivan, se prometerem cuidar com carinho, eu empresto o Four-Calendar Café para vocês qualquer hora, hehehe. É um disco que merece ser ouvido com toda a riqueza sonora do vinil, é lindo demais.

Sobre o Ligeti, se você assistiu ao 2001: A Space Odyssey e ao O Iluminado, então alguma coisa dele você já conhece. O Kubrick usou obras dele em ambos os filmes, principalmente no 2001. Detalhe (que eu adoro): Ligeti nasceu na Transilvânia.

Se quiserem visitar a Roots novamente qualquer hora, vocês sabem onde tem parceria!

Fabricio | 10/06/2024

Ah, e obrigado pela dica do filme! Não assisti, não, vou procurar.

Ivan Jerônimo | 13/06/2024

Obrigado pela oferta, mas não ia ter coragem nem de atravessar a rua carregando um LP desse preço.

Já pensou se sou atropelado e amassa a capa ou, pior, arranha o disco?

Ivan Jerônimo | 13/06/2024

Estou escutando a primeira música que apareceu do Ligeti –Réquiem II – e é justamente a do 2001, que eu achava que foi criada especialmente para o filme (foi?), de tanto que as duas experiências são indissociáveis.

Fabricio | 14/06/2024

Hahaha, tá certo, Ivan. Vamos deixar para ouvir ao Four-Calendar Café aqui em casa então, na próxima festinha que fizermos. Mais seguro! Sobre o Ligeti, a música não foi composta para o filme, não. Veja a história dela aqui: https://en.wikipedia.org/wiki/Requiem_(Ligeti).

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