Discos do mês - Maio de 2022
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

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Ralph Towner - Diary
Fazia muito tempo que eu não visitava uma feira de discos de vinil, mesmo antes da pandemia, decidido que estava a não mais comprar LPs de segunda mão. Tal decisão havia sido tomada para evitar a frustração que sempre me ocorria nessas ocasiões: ir à feira e achar alguns discos que me interessavam, analisá-los cuidadosamente, concluir que estavam em boas condições de preservação e pagar uma boa grana por eles — porque, via de regra, não eram LPs dos cestos de “qualquer um por R$ 10,00” — apenas para chegar em casa e descobrir que soavam péssimos, repletos de, na melhor das hipóteses, sujeira invisível impossível de extirpar ou, na pior, micro-riscos e outros danos físicos irremediáveis. Foi depois de alguns anos repetindo esse roteiro que decidi não mais adquirir vinis usados: apesar do prazer que eram estas excursões, o desprazer de ouvir aquilo que eu trazia para casa não compensava. Mas daí veio a pandemia, vieram esses longos outonos e invernos gelados sem sair de casa... Quando vi o anúncio de uma nova edição da feira marcada para o começo de maio, resolvi desrespeitar minha própria resolução e dar um pulo lá. Seria também, afinal, a chance de encontrar um ou outro velho amigo com quem eu sempre acabava esbarrando nesses eventos, amigos a quem eu não via há bastante tempo. (A hipótese de ir e não comprar discos, me parece desnecessário dizer, não existe: para quem sofre da patologia que sofro é como ir a um restaurante, sentar-se à mesa e não pedir comida alguma.) Pois bem, fui pensando em arriscar e comprar um ou quem sabe dois discos apenas, e até que não me saí tão mal: comprei quatro. Mas, finalmente, ao que interessa: achei, logo na primeira caixa que vasculhei, um maravilhoso disco do violonista norte-americano Ralph Towner, Diary, o segundo lançado por Towner via ECM Records (em 1973). Não estava barato, mas resolvi arriscar e dessa vez dei bastante sorte: o disco ainda soa muito bem, e até mesmo sua belíssima capa está em boas condições (ficaram melhores ainda depois que cheguei em casa e com certa pomadinha milagrosa que temos aqui conseguimos retirar os vestígios de um adesivo de preço que algum vendedor descuidado havia colado diretamente sobre a cartão do álbum). O disco é lindíssimo, devaneios acústicos que Towner faz acompanhar ocasionalmente por piano e percussão esparsa, música para o fim de tarde, música para não deixar que o dia que vai findando seja apenas mais um dia, apenas mais uma dúzia de horas trabalhando sem que se saiba exatamente para quê, mais um dia dentre os dias. Nessas situações, é de Ralph Towner que você precisa. Ele não vai necessariamente deixá-lo feliz, mas vai ajudar a reforçar as amuradas do espaço íntimo que nos ajuda a resistir aos avanços dos bárbaros, às notícias calamitosas, à desumanidade que se alastra por toda parte. Diary tomou conta da nossa vitrola desde aquele dia que voltei da feira; nem consegui escutar ainda aos outros LPs que comprei, e olha que estamos falando de titãs do quilate de Keith Jarrett, Egberto Gismonti e Wendy Carlos.
Vangelis - Voices
Vangelis foi imenso, por mim seu nome pode figurar em qualquer panteão dos nossos maiores. Ele praticamente inventou um tipo de música, viu mais longe, abriu portais, aumentou o domínio dos nossos sonhos. Não satisfeito, foi lá e compôs e gravou a música de Blade Runner, trilha que sempre me deixa estupefato de tão boa que é, sempre me surpreende numa espécie de ineditismo que se repete a cada nova audição, e olha que eu já a escutei centenas de vezes (e assisti ao filme outras tantas). Sua intensidade, sua urgência e engenho, é quase como se pudéssemos assimilar e experimentar todas essas suas qualidades apenas no momento exato em que a música entra em nossos cérebros, o tempo do choque das sinapses, do aturdimento, e então o disco acaba e tudo se esvai e fica semi-esquecido para ser rememorado e experimentado em toda sua fabulosa extensão apenas na próxima audição. Mas, embora a trilha de Blade Runner e também o disco Heaven and Hell (de 1975) sejam provavelmente os ápices do legado de Vangelis (o consenso costuma citar ainda a trilha de Chariots of Fire), o disco que escutei mais vezes nessas últimas semanas, em meus humildes tributos à sua memória, foi este Voices, lançado em 1995. Tem um pouco de todo Vangelis ali, mas tem sobretudo a elegância de suas composições mais maduras, mais cadenciadas, mais gentis. Descanse em paz, velho Odysséas Papathanassíu! E muito obrigado por tudo.
Australian Crawl - Sirocco
Perto da maior parte da música que escutei nas últimas semana (bem representada pelos dois discos acima) isto aqui não deveria merecer mais do que uma pequena nota de rodapé, porém algo me compele à confissão: andei ouvindo muito Australian Crawl! Certa vez ouvi alguém dizer que o Crawl seria o Midnight Oil para quem não liga para política; eu, contudo, penso que eles teriam que ser muito melhores para chegar a tanto… Mas gosto de Sirocco, gosto a ponto de ter o CD em casa, a ponto de tê-lo escutado umas duas ou três vezes nos últimos dias. Errol não saia da minha cabeça (já não lembro se ela foi parar ali antes ou depois de escutar ao disco pela primeira vez, ou seja, se foi causa ou consequência) e as duas faixas que abrem o CD, Things Don't Seem e Unpublished Critics, são muito boas, me lembram sempre, inescapavelmente, do caminho que eu fazia diariamente para ir e voltar do colégio. (E, não, Reckless não está neste tracklist.) Não é minha banda australiana favorita, nem a segunda ou terceira. Pensando bem, talvez nem a quarta ou quinta… Mas tenho carinho pelo Crawl. Eles estão ali fazendo boa figura no arquivo de bandas que, tivesse eu alguma pretensão de respeitabilidade ou sofisticação cultural, eu já as teria abandonado há anos, no mínimo desde que parei de fazer aquele caminho entre a casa e o colégio. Mas, oras, se ainda hoje eu ouço ao Erasure e ao Bon Jovi — e vez ou outra volto ao bairro da minha infância para refazer o caminho entre a casa e o colégio — certamente não é o fato de ainda ouvir aos discos do Australian Crawl que vai me macular a reputação.
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