Discos do mês - Junho de 2021
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

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Se eu tivesse que dedicar o relato deste mês a uma única banda, essa banda inevitavelmente seria o Cure. Escutei ao menos uma vez, nas últimas semanas, a cada um dos discos que eles lançaram entre 1979 e 1989, com exceção do Kiss Me, Kiss Me, Kiss Me cujo vinil que tenho está precisando de um bom banho antes de ser colocado sob a agulha novamente. Pornography e Disintegration foram três ou quatro audições cada um, pelo menos; o Seventeen Seconds eu perdi a conta, foram muitas; os outros, uma ou duas vezes cada. Ou seja, junho de 2021 foi um verdadeiro intensivão de Cure. É importante não perder de vista: naquela primeira década de vida eles lançaram Three Imaginary Boys, Seventeen Seconds, Faith, Pornography, The Top, The Head on the Door, Kiss Me, Kiss Me, Kiss Me e Disintegration. Nada mais nada menos do que oito álbuns excepcionais em sequência, pelo menos três ou quatro deles obras seminais de uma época e de um gênero, e umas boas duas obras-primas. Uma única banda, em 10 anos: se isso não é algo da categoria dos milagres artísticos possíveis, então não sei o que mais pode ser. O status que a banda possui hoje, todavia, foi um reconhecimento lento e tardio; tenho a impressão que poucos destes discos foram bem recebidos nas épocas de seus lançamentos. Quando me ocorrem estas maratonas de imersão em uma discografia, em geral acabo também lendo e pesquisando bastante sobre a banda ou artista, sobre a história de seus álbuns, alguma coisa sobre as pessoas, o contexto de suas vidas e trabalho, etc. E saltam aos olhos algumas críticas negativas que os discos do Cure receberam quando vieram ao mundo. Do Seventeen Seconds, por exemplo, alguém disse que era o tipo de som desinteressante “que deveria ter morrido com o Joy Division”. E vejam só a beleza cristalina que é este álbum! (E estaria o sujeito sugerindo que o fim do Joy Division foi uma coisa boa???) Seventeen Seconds poderia ser apenas Play for Today no lado A, A Forest no lado B, o restante de ambos os lados preenchido pelo som do trânsito de Londres e ainda assim seria um álbum magnífico, dos melhores já produzidos lá por aquelas ilhas, e olha que estamos falando das ilhas do Black Sabbath, do Pink Floyd e do Clash. A introdução de A Forest, na minha opinião, é o ápice de algum tipo de música que eu não sei dizer exatamente qual é — uma muito popular e acessível ou uma muito exclusiva e tenebrosa. Nem mesmo Pornography, pasmém, escapou de ser espezinhado por um ou outro jornalista ou semanário musical britânico em 1982... Mas tudo bem; coisas da época, da história da Inglaterra e da Europa, o clima social do começo dos anos 80 — a ressaca dos anos 70; a ascensão do B-52’s, talvez — fatores de ordens diversas devem explicar o não reconhecimento e aceitação imediatos do tipo de som feito pelo Cure, principalmente a secura daqueles primeiros discos, a fantasmagoria de Seventeen Seconds e Faith, o suicídio espreitando por todas as frestas de Pornography. Por sorte Robert Smith e seu rodízio de parceiros não deram ouvidos aos críticos e persistiram em sua visão musical… Acho que na época do Disintegration, em 1989, a banda já gozava finalmente de uma boa reputação crítica. E o curioso é que com o Disintegration eu tenho uma relação conturbada: é um disco tão bonito, mas tão bonito, que às vezes chega a ser exageradamente bonito demais. Bonito além dos limites que os discos deveriam respeitar para que não deixemos de acreditar neles.
Mas não foi só de Cure que me alimentei nestas últimas semanas. Dignas de nota foram também as companhias de My Bloody Valentine, Autechre e Velvet Underground. Apesar de achar que aquele filme Lost in Translation não vai envelhecendo lá muito bem, como propulsor da vontade de escutar shoegaze ele ainda é bastante eficiente. Creio que estou numa contra-corrente ao preferir o Jesus and Mary Chain ao My Bloody Valentine, mas às vezes, admito, é de uma dose de MBV o que eu preciso: a densidade asfixiante de seus 2 + 1 discos tem para mim quase que o mesmo efeito de um remédio, um xarope doce e espesso que eu tomo não para curar alguma coisa, mas para obliterar todo o resto do mundo, afogar tudo na desordem suprema da eletricidade. Já o Velvet Underground é uma banda sem comparações, que eu amo incondicionalmente e tenho como que repousada em um pedestal, mas um que visito muito pouco... É estranho: por um motivo e outro, quase nunca os escuto. Mas calhou de ouvir ao White Light/White Heat em bom volume nos fones, dia desses, e relembrar como Sister Ray é uma música extraordinária, a mais bela “anti-beleza” (expressão de John Cale) já inscrita em policloreto de vinila.
Autechre vem sendo companhia constante já faz uns bons dois anos e o fato de (se não me engano) nunca tê-los citado por aqui não é esquecimento: é pura inépcia intelectual, dificuldade em formular frases e pensar nos termos que eu poderia atribuir a esta música complexa que costuma, ao mesmo tempo, desconcertar e colocar a minha mente em um lugar no qual ela gosta muito de estar. Acho que o que realmente me atrai na música eletrônica é a sua (aparente) falta de estruturas e de limites, mas deixo para elaborar melhor isso noutro dia. Por ora digo apenas que a faixa VLetrmx, do EP Garbage, de 1995, é das coisas mais belas jamais inscritas em, sei lá, policloreto de silício ou seja lá o que for que usam para construir as memórias dos computadores. Também na categoria das companhias continuadas, Cluster, discos solos de Roedelius (um dos cérebros por trás do Cluster) e Eliane Radigue formaram a trilha sonora de algumas noites que eu teria gostado se nunca acabassem, se eu pudesse ter continuado dentro delas e da música para sempre. Música e imobilidade podem ser uma droga muito poderosa, uma que é necessário administrar com muito cuidado para não correr o risco de tornar a vida do lado de fora dela intolerável.
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