Discos do mês - Janeiro de 2022
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

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U2 - The Joshua Tree
É difícil falar mal de um disco como The Joshua Tree. Se você realmente precisa fazer isto, o jeito é recorrer às pequenas implicâncias e teimosias, como essa que tenho com o uso que Bono faz de sua voz, os pequenos rosnados, os bramidos e suspiros, o excesso de pulmão em alguns refrões. (Ao menos, em Mothers of the Disappeared, ele consegue se conter e não gritar “hallelujah, hallelujah”, como sempre tenho a impressão que ele irá começar a fazer a qualquer momento.) Esse pavoneio vocal é também o que me incomoda às vezes no Pearl Jam: o vocalista se esforçando o tempo todo para garantir que é ele o centro das atenções, como se dissesse que a música não pode viver sequer alguns segundos sem ele (em geral elas podem). Não fosse por isso, no caso do U2, não é improvável que The Joshua Tree fosse um dos meus discos favoritos e eu escutasse aos outros todos com muito mais frequência, coisa que, sendo as coisas como são, costuma ocorrer apenas um par de vezes por ano, quando muito... Mas não, pelo visto, em 2022: a despeito das minhas implicâncias, The Joshua Tree esteve em alta rotação por aqui nos primeiros dias deste novo ano. O que é inquestionável neste disco — não posso deixar de citar pois sou fã devoto dos dois — é o trabalho de Daniel Lanois e Brian Eno. Mais da metade do que me cativa neste álbum está naquilo que é evidentemente a contribuição destes dois magos dos estúdios: a ambiência, os ecos, o prolongamento dos sons, os espaços que aninham a música e dão-lhe vida, substância, temperatura, espontaneidade. E como explicar o milagre de I Still Haven't Found What I'm Looking For, um gospel repaginado em fantástico rock ’n’ roll, composto por um grupo irlandês e gravado por um produtor canadense e outro inglês? Bruxaria.
Keith Jarrett & Charlie Haden - Jasmine
Depois do U2 me vi novamente enlaçado, durante cerca de uma semana, pelo Scoundrel Days, do a-ha. Isso me acontece frequentemente. Mas desta vez não vou entrar em detalhes; já escrevi demasiadas vezes sobre esta minha estranha disfunção neurológica por aqui, e sei que voltarei a escrever, portanto deixemos o a-ha temporariamente de lado. Uma outra obsessão de verão, essa um pouco menos embaraçosa, foi Jasmine, da dupla Jarrett & Haden — o primeiro, Keith; o segundo, Charlie. Antes, digo para acrescentar contexto, passei pela maratona dos seis discos do box Keith Jarrett At The Blue Note - The Complete Recordings, nos quais o piano de Jarrett está acompanhado de Gary Peacock (contrabaixo) e Jack DeJohnette (bateria), figuras eminentes de tantos maravilhosos discos da ECM. Mas, conquanto sejam horas e mais horas de música sublime as registradas neste box, é com o contrabaixista Charlie Haden que Jarrett toca o céu, com o perdão da gasta metáfora. Jasmine é um destes raríssimos álbuns que sempre me fazem pensar que a música que estou ouvindo é uma evolução do silêncio: de tão perfeita e natural, de tão serena e sedativa, ela é das poucas, muito poucas, que podem ser melhores do que isto que seria o som ideal, por ser o mais fecundo, onde tudo inicia — o puro e completo silêncio. Mas é claro que tudo isso é mera especulação e potencialidade, uma vez que silêncio puro e perfeito ninguém nunca experimenta, ao menos não em vida.
Upsetters - Blackboard Jungle Dub
Janeiro teve ainda uma porção de Cult e R.E.M. aqui em casa (e não, não teve metal — está muito quente para ouvir metal), mas penso ser mais direito terminar este relato com a música que predominou nos últimos dias do mês, e na qual continuo imerso neste começo de fevereiro. Dub é paixão recente, nascida quando descobri os discos de Hopeton Overton Brown, aka Scientist, coisa de dois ou três anos atrás. Foi amor à primeira vista aqueles álbuns de capas delirantes e impagáveis do Scientist e depois os do Upsetters (a banda de Lee "Scratch" Perry) e de King Tubby que se seguiram. O páthos característico do reggae (de onde nasceu o dub) permanece em todos estes discos, em todas as suas faixas, mas é o resultado das manipulações e efeitos de estúdio aplicados sobre as canções originais o que torna esta música tão peculiar, um som frequentemente baço, opaco, cheio de repetições e intersecções obscuras e esquisitas, não raro desorientante, mas também quase sempre básico e visceral, que parece ressoar no corpo todo de quem o escuta. É estranho, a princípio, mas também hipnotizante. Dub talvez seja a prova mais concreta de que há algo de especial naquela pequena e pobre ilha da Jamaica, para além do fato de ter sido a terra-mãe de Marley, Tosh e Cliff: os inventores do dub, afinal, estão entre os pioneiros da música eletrônica, seguindo de perto os passos dos inventores da Musique concrète e da música eletroacústica na França e nos Estados Unidos, e estamos falando de uma gente que lá pelos anos 60, à diferença daqueles bem-nascidos que frequentavam conservatórios, devia ter alguma dificuldade para reunir dinheiro para quatro refeições ao dia, o que dizer então de equipamentos e educação e treinamento formal. Viva a Jamaica! (Deixo Blackboard Jungle Dub citado aí não por tê-lo escutado mais vezes ou por ser um favorito pessoal, mas por ser considerado um dos precursores deste tipo de música, e por ser uma ótima introdução a ela, a quem interessar.)
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