Discos do mês - Dezembro de 2021
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

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Converge & Chelsea Wolfe: Bloodmoon: I
Ainda que vez ou outra eu ponha um disco do Converge para tocar, estou bastante longe de poder ser considerado um fã da banda, e por isso o anúncio do álbum gravado em parceria com a Chelsea Wolfe não chegou a me animar. De Chelsea sou fã fervoroso, porém desconfiei que nesta aventura ela acabaria engolida pelo caos do som do Converge, sua magnífica voz e presença tornariam-se acessórios da selvageria habitual de Jacob Bannon, Kurt Ballou e cia., e que tudo isso representaria para ela uma volta ao (ruim) Hiss Spun e um afastamento do excepcional Birth of Violence. E eu estava errado. Muito errado. Bloodmoon: I é monumental, um disco que encanta e vicia logo na primeira audição e logo na primeira faixa. Os gritos e uivos entrelaçados de Bannon e Wolfe nos momentos finais de Blood Moon, erguendo-se amaldiçoados e espectrais por sobre a deslumbrante massa sonora tramada a ferro e fogo pela banda (reforçada por Ben Chisholm, que toca nos discos de Chelsea, e Stephen Brodsky, guitarrista do Cave In) é arrepiante: lembro de ter ficado com as mãos suspensas sobre o teclado do computador, aturdido, a concentração no trabalho bruscamente interrompida enquanto ouvia a esta faixa pela primeira vez. É este meu disco predileto de 2021, eu já o sabia depois de mais duas ou três faixas. O álbum como um todo é um banquete opulento em todos os sentidos, com destaque final para a produção e sua luxuriosa paleta de sons e de texturas, que levam o ouvinte do dissonante ao grandioso e daí ao sombrio e ao brutal sem perder o interesse e a coesão, e em pelo menos uma ocasião temos até uma espécie de blues gótico que soa quase como se o Converge houvesse nascido para esse tipo de som, aguardando apenas que Chelsea Wolfe viesse em seu auxílio para materializá-lo. E tem Failure Forever, que deveria vir com algum tipo de advertência sobre ser impossível tirá-la da cabeça; e Crimson Stone, linda de morrer. E tem mais, muito mais. Que disco escandalosamente sensacional.
Blank Gloss - Melt
Descrever a música de um artista através de alusões e referências a outros artistas nem sempre é uma boa ideia pois corre-se o risco de, 1), cometer injustiças com o artista sendo descrito ao limitá-lo, mesmo que involuntariamente, a um mero copiador ou copiadora de outras obras, e, 2), tentar parecer alguém de grande conhecimento musical, que fica name-dropping apenas para exibir-se. E reconheço que, apesar da consciência dos perigos acima, eu me aproveito deste recurso com uma frequência bastante alta por aqui. Mas tenho esperanças sinceras de não ser acusado do item 2 pois sou no fim das contas apenas um apaixonado diletante, alguém que passa boa parte dos seus dias em contato íntimo com discos e bandas, embora não saiba o significado exato da palavra “acorde”; alguém que, apesar de ter se sentado diante de um piano não mais do que quatro ou cinco vezes em toda sua vida (1), passou os últimos 30 anos ouvindo e explorando música gravada de forma metódica e quase fanática (eu disse "quase"?), e lendo muito sobre o assunto (lendo resenhas e biografias, nunca teoria), e por conta disso tudo acabou inevitavelmente acumulando alguma bagagem de referências. Isso, portanto, não me preocupa. O item 1 é o mais perigoso. Ocorre que em muitos casos as referências são inescapáveis. Criar uma nova música a partir de elementos pré-existentes não deixa de ser arte; ninguém ignora que muito do que amamos e reverenciamos nasceu de processos de reinvenção, reinterpretação, colagem, recontextualização. É inevitável lembrar da maravilhosa trilha sonora de Paris, Texas, escrita por Ry Cooder, ao escutar Melt, da dupla norte-americana Blank Gloss, assim como é impossível deixar de pensar em Harold Budd, em Liz Harris e a música lançada sob seu pseudônimo Grouper, em Steve Hiett e Daniel Lanois. Talvez o caráter esparso da música incite estas lembranças e associações; talvez seja uma tradição musical em plena fermentação, e por isso busquemos as referências, para nos orientar neste novo mapa. Em todo o caso, Melt não é mero pastiche: há novidade no trabalho de Patrick Hills e Morgan Fox, no dosar e manejar das influências, na coordenação dos sons que a dupla clara e respeitosamente venera. As guitarras que lembram Ry Cooder estão em slow-motion; a atmosfera que poderia lembrar Harold Budd não evoca as mesmas paisagens de sonho do mestre falecido no ano passado, mas antes visões de desertos, de horizontes que ondulam pelo efeito ótico do calor... Há ainda micro-doses de refrescante eletrônica e a nostalgia de certo disco do Yo La Tengo. Ou seja, a música-amálgama do Blank Gloss tem seu aspecto próprio, e sinto que se apóia não em indivíduos específicos, mas em uma linhagem musical norte-americana que trilha as fronteiras entre o neo-clássico e o popular, que se alimenta das tradições do elétrico e do minimalista, algo que, como falei antes, parece estar ainda em edificação. E se no meio disso tudo ainda traz ecos de Dylan Carlson sem perder a graça e a coerência, então temos que dar muito crédito aos dois rapazes.
Sarah Louise - Field Guide
Com o disco acima funcionando como uma etapa de transição, em fins de dezembro a música predominante em meus ouvidos passou a ser mais serena e pastoral: o folk inglês das Unthanks e das Smoke Fairies, e Bert Jansch e sua banda Pentangle. Depois descobri no bandcamp (ah, o bandcamp!; nunca terei elogios e gratidão suficientes para com este site) uma violonista chamada Sarah Louise e com ela logo me mudei dos velhos portos e vilarejos britânicos para os campos mais frescos e mais selvagens do Novo Mundo, quando este ainda não tinha os nomes pelos quais o conhecemos hoje, de norte a sul. Sou apaixonado pelo som do violão, pelos discos de Jack Rose, Baden Powell e John Fahey, e agora, finalmente, acrescentei um nome feminino ao elenco de meus ídolos neste departamento. Tenho a impressão (ouvi pouco) que os discos mais recentes de Louise são mais sofisticados, com mais vozes e instrumentos, mas por ora permaneço dedicado aos seus trabalhos acústicos como este Field Guide, de 2015. Eu me perco completamente neste disco. É o território dos meus sonhos: parte de rios e de montanhas; parte de país nenhum, de sociedade alguma.
(1) E, não obstante a longa distância temporal para a última vez em que isso aconteceu, não me esqueço da sensação do toque nas teclas, de sua frieza e densidade, e da sensação aveludada ao apertá-las até o fundo, e a surpresa do som produzido. Todas essas lembranças estão amarradas à lembrança da casa de um avô meu falecido há muito tempo, e que possuía um piano de parede. ↩
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