Dying Days
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500 florins

Fabricio C. Boppré |
500 florins

Crédito(s): Festa de Belsazar, de Rembrandt Harmenszoon van Rijn, copiada daqui.

Dia desses retirei da estante um livro lido há muito tempo, quando eu era ainda adolescente. Sentei na poltrona e comecei a folheá-lo, deparando com diversos trechos sublinhados, hábito herdado de meu avô, cujos livros eram repletos de marcações e anotações feitas com lápis apontado a estilete e caligrafia caprichada. Lindos artefatos aqueles livros de meu avô, as páginas grossas e envelhecidas têm hoje um aroma inebriante... Mas, de volta ao meu volume: relendo os trechos que sublinhei naquela leitura quando eu ainda não contava nem 18 anos (e nada do capricho de meu avô), comecei a sentir tonturas à medida que um estranhamento crescia e me atravessava: eu não conseguia entender os motivos que teriam me levado a assinalar aqueles trechos e parágrafos em particular. Não havia nada de especial em nenhum deles, nada de curioso, de importante a ser relido no futuro. A informação isolada de que Rembrandt recebeu 500 florins como pagamento por determinada pintura não me parece, hoje, ter relevância alguma 1. Estrapolando a inquietação, me assustei por não conseguir recuperar quem eu era naquela época da minha vida: deparei-me com um eu que era outro. Foi estranho, mas foi breve. Logo ajustei-me àquela sensação e percebi, refletindo com calma, que não era nada assim tão extraordinário, afinal, passaram-se quase 30 anos, e a mudança, de acordo com um sábio muito antigo, é a única realidade da vida. E eu ainda tinha que trabalhar e lavar a louça. Em todo o caso, "I cherish these moments", como diz o garoto daquele filme enquanto fuma um cigarro com seus dois melhores amigos ao redor de uma fogueira... Pasmos revelatórios deste tipo (que eu só posso supôr que aconteçam com todo mundo) dão um charmezinho para a vida, nos ajudam a conservar a esperança boba de que somos especiais, feitos de inspirações profundas, centelhas do divino, etc. Uma fantasia da qual não devemos privar ninguém, salvo casos patológicos e pastores de igrejas picaretas. Neste caso pessoal que relato houve ainda um agravante. Meu episódio de assombro transcorreu tendo como trilha-sonora este maravilhoso disco de Roy Montgomery, Scenes from the South Island. A música profunda de Montgomery, que parece não ter começo e nem fim, como se captada do mais fundo do céu, ou de uma outra camada da realidade para a qual nossos sentidos ainda não atentaram, essa música profunda e misteriosa possui, por si só, a propensão de colocar seu ouvinte em um estado de espírito introspectivo. Se calha de encontrá-lo em uma disposição previamente desarmada, suscetível a dúvidas e misticismos, seu efeito então passa para uma outra escala. A guitarra de Montgomery parece conter o universo e todas suas infinitas possibilidades. Os ecos e feedbacks representam as tantas dimensões sobrepostas; os ciclos e repercussões reforçam a hipótese de Borges, de que todas as possibilidades não apenas se cumprirão como também se repetirão ad infinitum. A simplicidade — não se trata de um aparato elétrico-orquestral como o de Glenn Branca; é apenas Roy e sua guitarra — abre caminhos para mais devaneios e deslumbramentos. Meu pequeno momento de perplexidade, prosaico como há de ter sido, enquanto ocorria parecia-me não menos do que épico: se mal sabemos o que somos, se duvidamos às vezes até mesmo daquilo que supostamente temos acesso total e irrestrito — nossas próprias individualidades —, o que dizer então desta coisa imensuravelmente vasta que nos abriga? Chegaremos a entender, de verdade, alguma coisa algum dia? A música acabou, o livro voltou à estante. Minutos depois eu lavava a louça na cozinha, despreocupado com quem sou ou quantos sou. Ou somos, sei lá. A tontura passara, mas reverberavam em mim ainda a dúvida e a aventura... Então pergunto (de novo): não é a música a melhor das artes? A mais cheia de potencialidades? Ela amplia tudo, até mesmo o livro, o símbolo por excelência da cultura e ciência humanas. Atribuindo sentidos e emoções, reais ou ilusórios, a música não necessariamente explica, mas certamente melhora tudo, e do jeito que a coisa anda parece-me cada vez mais que isto é o melhor que podemos fazer. Talvez seja o que nos resta fazer. Tornar bonitas as ruínas. Se estamos a testemunhar o começo do fim, se os avisos e protestos de nada servem para refrear as estruturas da destruição, que seja ao menos um belo de um espetáculo; acompanhado de boa música, que nos extravie em profundezas cósmicas, que nos jogue e nos largue na vertigem. Vai ser triste, mas vai ser bonito.


[1] A informação, por outro lado, de que existiu na Holanda um culto de fanáticos que santificavam um sujeito que esfaqueara um outro quadro de Rembrandt pois acreditavam que tal maluco seria, na realidade, a reencarnação de um dos personagens retratados na obra vandalizada, este parágrafo sim eu deveria ter sublinhado. Sublinhei-o agora. Vamos ver o que pensarei dele daqui 30 anos, quando voltar a reabrir este volume.

Categoria(s): Memória

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