Dying Days
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Discos do mês - Março de 2021

Fabricio C. Boppré |
Discos do mês - Março de 2021

Earth (Hex; Or Printing In The Infernal Method), Jon Bon Jovi (Blaze of Glory, disco “inspirado pelo filme Young Guns II”) e um punhado de discos de Bob Dylan e Muddy Waters devem responder, sozinhos, por mais de 90% de tudo o que escutei neste mês de — ora, que diferença faz que mês foi este que terminou. Pode parecer, em um primeiro momento, um balaio de música bastante desigual, mas há um estado de espírito não tão disperso assim por trás dessa trilha sonora: é música norte-americana, não meramente do ponto de vista do local onde ocorreu nascer esses artistas, mas da matéria prima de que foram feitos estes discos, suas inspirações, paisagens evocadas, etc. É algo que me acometeu nestas últimas semanas enquanto eu terminava uma releitura de Moby Dick e agora planejo retomar os livros de Cormac McCarthy (Dylan Carlson relata grande influência de um dos livros de McCarthy, Blood Meridian, na composição de Hex); tenho também assistido muitos westerns e filmes noir, o que certamente contribui para este humor meio árido, tão bem representado pela capa do disco do Earth (lembro de ter ficado decepcionado quando descobri que assim era a capa da versão em vinil que eu planejava comprar, não por desgostar dela, mas por ser diferente da capa da versão em CD, que eu acho linda de morrer; comprei o vinil, mesmo assim; como consolação, ele traz na parte interna uma miniatura da imagem do celeiro assombrado que ilustra a capa do CD). Bob Dylan, quem passa por aqui com alguma frequência já deve ter percebido, é um dos meus heróis e eu o escuto muito frequentemente, mas por um desses acasos da vida, Time Out of Mind, apesar de ser um álbum bastante celebrado — o grande e finalmente concretizado retorno de Dylan à boa forma, em 1997, depois de muitos e muitos discos que prometiam tal coisa mas sempre falhavam — esse disco eu nunca havia escutado com um mínimo de dedicação. Devo ser o mais desleixado dos milhões de fãs que Dylan possui… Time Out of Mind merece plenamente todas as palavras de enaltecimento que em geral o acompanham, em especial aquelas dirigidas à produção de Daniel Lanois, que ousadamente submergiu Dylan em ruidosa ambiência, repleta de chiados e sons abafados vazando por todos os lados. As canções são ótimas, mas é o clima do álbum que faz ele ser o êxito que é. No entanto, parece que Dylan não gostou muito do resultado — aliás, é um pouco estranho que tenha chamado Lanois para produzir o disco, uma vez que a parceira anterior entre eles, a produção de Oh Mercy, de 1989, não foi exatamente um trabalho amistoso e harmônico, se pudermos acreditar no relato que consta em Chronicles: Volume One — e por conta dessa insatisfação com o som de Time Out of Mind (mas também seguindo uma de suas mais singulares e mitológicas tradições), Dylan acabou alterando bastante o arranjo e o formato das canções durante a turnê que se seguiu ao lançamento do álbum (a continuação, na verdade, de sua Never Ending Tour). Minha faixa favorita de Time Out of Mind espelha a minha favorita em Blonde on Blonde: no clássico de 1966 é Sad Eyed Lady of the Lowlands, o épico de 11 minutos que fecha o álbum; em Time Out of Mind, é Highlands, épico de 16 minutos igualmente posicionado na faixa derradeira. Dylan e Muddy Waters são cânones da cultura norte-americana, figuras de grande apelo popular e inegáveis méritos artísticos; o Earth e sua música iconoclasta, exigente e esfíngica, embora ocupe uma seara bastante diferente, é igualmente incontestável em termos de validade artística, nem que seja apenas ao que se refere à integridade de suas intenções (afinal, é perfeitamente compreensível que alguém não consiga ir além do primeiro minuto de qualquer um dos discos da banda); o que então Jon Bon Jovi está fazendo no meio dessa gente altamente qualificada? Aqui, meus amigos, é a nostalgia operando novamente, este velho sentimento que é parte indissociável dos meus hábitos musicais, no meu trato com meus discos. Blaze of Glory foi o primeiro CD que eu comprei (junto com o Scoundrel Days do a-ha) e ainda hoje eu o adoro e o escuto com alguma frequência. Quando se tem uma relação de tanto tempo assim com um álbum (arredondando, 30 anos), mesmo que aí pelo caminho tenha ocorrido uma ou outra breve separação não-litigiosa — afastamentos estratégicos para as aparências e a moral e o prestígio do indivíduo perante a sociedade (leia-se os amigos e as meninas) — depois de todo esse tempo, creio que se perdem a capacidade e a idoneidade para um julgamento imparcial de suas músicas, para uma apreciação que parta de qualquer ponto de vista que não seja o completamente subjetivo. Ou, talvez: perde-se a capacidade de se julgar suas músicas, ponto. Mais ou menos como somos sempre completamente incapazes de julgarmos a nós mesmos... As lembranças, as impressões digitais e emocionais estão por todo o CD, em seu encarte e suas faixas — não é mais apenas uma coleção de músicas, boa ou ruim, não importa. Não faço nenhum esforço contra essa fidelidade cega, ou essa cegueira fiel; hoje em dia, quanto mais numerosos forem os discos e livros que nos ajudem a passar o tempo, mais consideravelmente maiores são as chances de sairmos disso tudo livres de grandes traumas.

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