Dying Days
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Discos do mês - Fevereiro de 2021

Fabricio C. Boppré |
Discos do mês - Fevereiro de 2021

A verdadeira intenção daquele texto no meio do mês passado, agora eu me dou conta, era antecipar a confissão de que em fevereiro eu passei muitas e muitas horas ouvindo coisas como Journey, Boston, Asia e Foreigner, e assim tirar logo toda aquela música embaraçosa do caminho. Além, claro, de fazer umas piadas com Michael Bolton. Resolvido isso, posso agora comentar exclusivamente a música que escutei quando a febre baixou e voltou a prevalecer o adulto em mim, começando com a versão do pianista russo Pavel Kolesnikov para as Variações Goldberg. Eu sei, eu sei: corro o risco de transformar este blog em um aborrecido registro das minhas audições das Goldberg, e essa versão, para ser franco, me entusiasmou muito pouco durante boa parte do meu primeiro contato com ela. A culpa, como sempre, era dele, das versões que ele — o menino, não o cachorro — viria a gravar quando se tornasse adulto. Kolesnikov não faz feio — sua interpretação não chegou a me desagradar como a de Wilhelm Kempff, por exemplo, mas... bem, já escrevi sobre a maldição de Glenn Gould. Eu ouvia ao disco de Kolesnikov e os detalhes de sempre me incomodavam aqui e ali, e quando já não esperava mais muita coisa, bem no finzinho da jornada acontece uma pequena mágica que a redime quase que por inteira. É este um dos encantos da música erudita: sua meticulosidade e o trabalho árduo de maestros e musicistas costumam abrir generosas margens para certos tipos de nuances e revelações, coisas que podem enriquecer muito as audições à medida que elas vão se acumulando e começamos a memorizar e a entender cada obra. No caso das Goldberg de Kolesnikov, é um detalhe ínfimo, um quase nada, mas realmente me tocou: ao fim da última variação, conhecida como Variatio 30. a 1 Clav. Quodlibet, ao invés de esperar desvanecer completamente a reverberação das cordas do piano antes de iniciar a repetição da Aria que finaliza a peça, Kolesnikov começa a tocá-la enquanto ainda ressoam as notas finais da Variatio 30, sobrepondo uma coisa à outra, e assim toda a odisséia das variações, todo aquele longo e maravilhosamente imaginativo labirinto de sons, é como que imediatamente sublimado pela beleza inigualável da Aria imortal de Bach, que, de lambuja, costurada por sobre o estertor das variações, torna-se ainda mais bonita e luminosa, seja pelo contraste, pelo inesperado, pela demonstração de fôlego do pianista, seja lá por que sortilégios que tornam possível algo que já é incomensuravelmente bonito tornar-se ainda mais belo, e isso tudo sem precisar entrar no mérito da qualidade da execução de Kolesnikov. Creio não ter escutado anteriormente tal truque nas muitas Goldberg que já tive a sorte de ouvir, algo tão simples e de efeito tão extraordinário... Glenn Gould, creio eu, teria aprovado. Assim como Dmitri Shostakovich provavelmente aprovaria a interpretação de Nicola Benedetti para o seu primeiro concerto para violino, embora a violinista escocesa tenha, à semelhança do que fizeram muitos outros antes e depois dela, desobedecido algumas das instruções escritas pelo compositor em sua partitura original, por serem (é o que dizem) humanamente impossíveis de executar. Voltei a esse concerto uns dias atrás. É a música perfeita para aqueles dias em que pouca coisa acontece e as horas transcorrem lentas e mortiças, soterrando-nos pouco a pouco, e à noite, sob esse peso todo acumulado, fica difícil achar ânimo para fazer qualquer coisa. Não se deixe enganar por sua longa e pesarosa introdução: a injeção de adrenalina não tarda. São duas obras monumentais que adoro, o concerto de Shostakovich e As Variações Goldberg de Bach, porém o compositor mais assíduo aqui em casa nos últimos dias não é russo e nem alemão: a música que mais tenho escutado vem da Austrália, cortesia do compositor Peter Sculthorpe. Earth Cry, a peça que abre Songs Of Sea And Sky — e que devido à frequência com que a vejo nos discos dedicados à música de Sculthorne presumo que seja sua obra mais festejada — é um incrível épico encapsulado em pouco mais de 10 minutos, música altamente cinemática feita de movimento e tumulto, fogo e vento, céu e terra. Mangrove é mais climática e controlada, e aqui o didgeridoo (instrumento de sopro de origem aborígene onipresente ao longo de todo o álbum), soando em boa parte da peça como um drone antes de ganhar protagonismo com suas estocadas, aqui o som grave e primitivo deste instrumento me pareceu mais natural e bem encaixado do que em Earth Cry (o encarte traz a informação de que o didgeridoo não faz parte das partituras originais das obras deste disco; eles foram improvisados sobre elas por William Barton seguindo instruções do próprio compositor). A peça que dá nome ao disco, Songs Of Sea And Sky, tem um pouco de tudo em seus seis movimentos; as faixas finais, cada qual a sua maneira, elaboram mais um pouco sobre os temas e paisagens australianas tão caras ao compositor. É um disco excelente, uma das mais empolgantes viagens que tenho feito neste um ano de quarentena.

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