Dying Days
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Discos do mês - Novembro de 2020

Fabricio C. Boppré |
Discos do mês - Novembro de 2020

Fleet Foxes - Shore

Da forma como vejo o mundo, a felicidade reside nas páginas de Moby Dick, nos sulcos dos meus discos do Led Zeppelin, e em fins de tarde na praia, sentado na areia diante do mar. Em substituição a este último item, que este ano terá que ser evitado, ultimamente tenho encontrado-a também na música do Fleet Foxes. O que esse tanto de gente diz a respeito desta banda está absolutamente correto: trata-se de algo especial. Sua música é calcada em diversas tradições, todas bastante populares e sedimentadas, mas me parece ser também, ao mesmo tempo, uma música só deles, distinta e eloquentemente honesta. Shore é o quarto disco apenas do Fleet Foxes, mas todos os quatro são deste mesmo calibre, todos eles pequenas obras-primas que enriquecem amplamente o acervo defensivo da humanidade, o acervo das obras que nos previnem — aos despertos, aos pacíficos, aos minimamente informados — de simplesmente desistir diante de toda essa estupidez e selvageria que já nem sei quando exatamente tornou-se comportamento aceitável e até elogiável neste mundo endoidecido. É folk meigo e cândido, é desinibidamente riponga, e é também das músicas mais necessárias nesta segunda década do século 21, uma época em que, até pouco tempo atrás, creio que ninguém julgaria que o velho folk paz & amor fosse ter ainda esse valor espiritual todo.

War on Drugs - Live Drugs

Passo longos períodos sem ouvir ao War on Drugs, e quando finalmente o faço, eu sempre me penitencio por isso: esses caras não deveriam nunca ficar tanto tempo sem tocar aqui em casa! Esse disco ao vivo Live Drugs é extraordinário. Todas as qualidades que ouço na banda estão ampliadas aqui, principalmente na peculiar entonação do cantor, Adam Granduciel (que tem algo de Bob Dylan), e nos solos de guitarra que soam sempre como os aguardados clímax das canções da banda, canções que, via de regra, começam tranquilas, frugais, mas vão intensificando-se gradualmente, ganhando corpo e emoção, e terminam quase sempre de um jeito que torna muito difícil relembrar como começaram e o que de tão incrível aconteceu a elas durante os seus médios 6 a 8 minutos. Eles têm algum truque, alguma manha sutil e muito especial. (Será trapaça colocar na minha lista de melhores de 2020 um disco ao vivo?)

Midnight Oil - The Makarrata Project

Eu nem esperava tanto assim deste The Makarrata Project, o primeiro de dois discos que o Midnight Oil lança este ano (aquele que seria o segundo, na verdade, não sei se continua programado para sair ainda em 2020; procurei por alguma notícia sobre ele mas nada encontrei). Foi, portanto, uma agradabilíssima surpresa escutá-lo e descobrir, já na primeira audição, uma belíssima coleção de músicas, rica em ideias, sonoridades, vozes. Trata-se de um disco conceitual, um disco centrado em uma causa — o Midnight Oil sempre foi, evidentemente, uma banda com uma causa, porém desta vez temos um álbum que é, integralmente e desde sua origem, um manifesto (para mais detalhes, clique aqui), um disco-declaração cujas força e legitimidade estão principalmente na participação de diversos outros artistas australianos, muitos deles de origem aborígene, o que suspende, enfim, as velhas (e pertinentes) críticas de que o Midnight Oil nada mais era do que cinco homens brancos falando (e faturando) em nome de um povo autóctone marginalizado e oprimido. E, para além do valor político destas colaborações, são elas também as principais responsáveis pela beleza do disco: o velho pulso da banda está lá, em todas as canções, praticamente intacto mesmo passados 18 anos de seu último álbum (me refiro ao pulso amadurecido de discos como Breathe e Capricornia, é claro), mas são as vozes de Gurrumul Yunupingu, Alice Skye, Frank Yamma e Kev Carmody, entre outros, os grandes trunfos das sete faixas de The Makarrata Project. Se eu rezasse, certamente estaria entre as minhas preces diárias o pedido para que o triste falecimento do baixista Bones Hillman, algumas semanas atrás, não venha a interromper esta tão promissora volta do Midnight Oil.

Bob Marley - Survival

Embora eu tenha escutado diversas vezes aos discos citados acima, a verdade é que eles não representam muito bem — descontando, em parte, The Makarrata Project — o teor geral de minhas audições nas últimas semanas. Tenho tentado, já há algum tempo, dedicar mais tempo às vozes reprimidas deste mundo, ouvir com mais frequência aos seus pontos de vistas, suas crenças, seus sonhos e suas atribulações conforme expressos na linguagem universal da música, consciente que sou de que, por mais que me considere alguém minimamente informado sobre desigualdade e injustiça social, continuo homem branco de classe média, amparado por uma penca de privilégios dos quais muitos mal devo me dar conta e amplamente desconhecedor das alternativas que existem ao modo como vivemos e como estamos construindo (e destruindo) este mundo. Tenho ouvido mais mulheres — das cantoras folk dos anos 60 às compositoras de música experimental contemporânea — e negros — muito jazz, blues, reggae, música africana e outros gêneros nos quais os negros comandam — e, aos poucos, tento abrir caminho na música popular de outras terras, de outras culturas, principalmente as minoritárias e as que não contam com aparato midiático algum para promovê-las. Bob Marley talvez seja um clichê, mas para mim é um clichê inescapável. E sempre me deixa absolutamente exasperado a forma como Marley e a música reggae como um todo foram manipulados e transformados em algo completamente diferente do que são (ou eram) de fato: de uma música essencialmente política e rebelde a mero apêndice recriminador de uma banalidade, o hábito comum e secundário de se fumar uma erva — hábito, embora inofensivo (e efetivamente tolerado sob muitas outras formas quando praticado por outros grupos de pessoas), bastante eficiente para distinguir e encarcerar certo grupo minoritário não muito bem-vindo fora de seus guetos. Isto é uma afronta, uma infâmia altamente instrutiva sobre o modo como funciona nossa sociedade, o modo como declaramos guerra e dominamos e aniquilamos ou subvertemos o não-normativo, o diferente, o preto, o pobre. E, no entanto, eles resistem, e não só isso: fazem música, muita música. Penso que ouvir estas vozes é tão importante quanto começar a pensar, desde já, o mundo que queremos erguer destes escombros todos que estamos amontoando por todos os lados.

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