Discos do mês - Outubro de 2020
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

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Tangerine Dream - The Keep (Original Motion Picture Soundtrack)
Ando viciado em duas coisas: queijo gorgonzola e discos do Tangerine Dream. Reflexões sobre queijos não são o objetivo deste blog; sobre o Tangerine Dream, não chega a ser exatamente uma novidade, uma vez que vivo citando-os por aqui… Mas há um aspecto novo no exercício deste vício: a missão que incumbi-me de adquirir [1] todos os seus álbuns, missão que só parecerá banal àqueles que não sabem do que se trata a discografia do Tangerine Dream [2]. Sendo fã antigo é claro que tenho há bastante tempo todos os grandes clássicos que esta venerável entidade alemã gravou em sua fase mais inicial e desbravadora, lá nos anos 70: os épicos cósmicos Phaedra, Zeit, Rubycon, entre outras obras fundamentais para quem aprecia música eletrônica e aventureira. Destes discos sou íntimo há tempos, são todos velhos conhecidos. Um pouco menos ilustre é o terreno que percorro agora: o das trilhas-sonoras que os alemães gravaram aos borbotões nos anos 80, uma sucessão espantosa que não poderia nunca — seria humanamente impossível — sustentar o nível de qualidade daquela primeira fase. Há trilhas memoráveis, é claro: a música de Sorcerer é parte indissociável da obra magnífica que é este filme; a música de Firestarter é muito melhor do que o próprio filme; música e psicodelia apocalíptica de certa franja hollywoodiana nos anos 80, em Miracle Mile, são uma delícia. Há, no entanto, uma porção de coisas completamente descartáveis (devo admitir que elas predominam?), música semi-autômata que quase não se distingue entre si em filmes igualmente irrisórios como Three O'Clock High, The Park Is Mine e Catch Me If You Can. Uma febre alucinógena de Tangerine Dream parece ter contaminado os produtores e diretores que estiveram presentes em alguma festa extravagante na bizarra Los Angeles dos anos 80, e de lá se alastrado por estúdios e escritórios… Não consigo imaginar que outra ligação pode haver entre filmes tão desiguais. O fato é que Edgar Froese, Christopher Franke e Johannes Schmoelling (os nomes mais assíduos no Tangerine Dream daquela época) não tinham como se esforçar muito nestes trabalhos encomendados: imagino-os ligando alguns botões, bebendo cerveja, prolongando e manipulando algumas pulsações, eventualmente se deslumbrando com uma ou outra descoberta, e pronto, ao cabo de uma semana estava cumprido mais um contrato. Para certos filmes — isso não é conjectura: li em algum lugar — o grupo sequer via cenas ou imagens: bastava um roteiro ou uma ideia transmitida por telefone. Bem, tal música é, em muitos casos, desnecessária, porém para mim sempre bastou o selo “Tangerine Dream” — eu gosto de tudo o que a banda fez em qualquer época e sob qualquer motivo ou inspiração ou mesmo ausência de inspiração. (O disco que uso para ilustrar esse comentário, a trilha de The Keep, um filme ruim de Michal Mann, é simplesmente o último que escutei no momento em que escrevo estas linhas, e não é melhor nem pior do que os muitos outros que tenho escutado por esses dias…)
Eliane Radigue - Transamorem / Transmortem
Ainda que a paixão pelo Tangerine Dream seja uma das convicções da minha vida de melômano, uma outra, de certa forma desafiante à esta, tem se consolidado pouco a pouco em mim nos últimos anos: a percepção de que nesta seara da música eletrônica experimental as mulheres são muito superiores aos homens. Por algum motivo; por qualquer motivo; por motivo algum — não sei dizer. De algum ponto vista, nem que seja um muito distante, plantado em alguma outra galáxia, não deve haver diferenças significativas entre homens e mulheres, mas, estando cá na Terra, eu até teria curiosidade de entender os motivos desta preferência, se determinarmos que não é mera casualidade. Eu adoro o Brian Eno, mas suas mais belas peças empalidecem perto da beleza colossal das obras de Pauline Oliveros; o celebrado William Basinski, para mim, não chega aos pés da precisão de Eliane Radigue; a música de Karlheinz Stockhausen eu confesso não ter explorado ainda com a atenção que ela parece merecer, porém o que já tive oportunidade de escutar até aqui me assevera que ele não poderá nunca, nem mesmo se lá do mundo dos mortos ele der um jeito de nos mandar algumas novas partituras repletas de incríveis conhecimentos adquiridos no inferno ou no paraíso ou seja lá onde for que ele tenha ido parar — em hipótese alguma ele poderá me deslumbrar mais do que Laurie Spiegel já o fez com sua música. Mas deixo para outra hora a tentativa de compreender este fenômeno. A estes nomes femininos, Laurie, Eliane e Pauline, outros têm se juntado nos últimos tempos, mas o que estas três pioneiras gravaram em suas longas carreiras configura um universo sonoro que parece expandir-se infinitamente. Em particular, a música de Eliane e Pauline (esta última, infelizmente, não está mais entre nós) pode ser catalogada mais precisamente no ambient, e a segunda fase dos experimentos de Eliane é, para mim, o néctar supremo do gênero. O som conjurado e registrado em Transamorem / Transmortem, por exemplo, recompensa generosamente quem atravessar com persistência e atenção sua mais de uma hora de micro-detalhes e rigorosa fantasmagoria. Não estará incorreto quem desdenhar que o que Eliane faz é captar alguma espécie de átimo ou unidade sonora e prolongá-la vastamente, intercalando uma ou outra minúscula interferência. Isto, no entanto, não significa de modo algum que o resultado é estático ou desprovido de vida: Transamorem / Transmortem é muito mais do que silêncio, sendo que aquilo que nos habituamos a chamar de silêncio já é, por sua vez, muito mais do que um mero vazio… Transamorem / Transmortem posiciona-se em um interstício: menos do que música (por não haver narrativa de espécie alguma, ou, em outras palavras, não nos tornar parte inativa na exposição de uma ficção sonora) e mais do que a não-existência que seria o silêncio absoluto que, insisto, não existe, nem mesmo entre surdos. Silêncio total só é possível, em última instância, para aquilo que não existe ou não tem vida, de modo que dizer que este som é mais do que silêncio pode parecer uma tautologia; seu caráter imersivo e quase imóvel, contudo, tenta nos aproximar dos benefícios irrealizáveis desta utopia extra-corporal, e é esta conjunção espírito-auditiva — este meio caminho entre o pensamento autocentrado e consciente e o silêncio hipotético da não-existência, trilha quase invisível e definitivamente fora da experiência humana cotidiana — é esta sintonia o primeiro passo para a recompensa mencionada acima. Creio que isso é o máximo que se pode escrever sobre Transamorem / Transmortem — alguma obstinação, algum empenho extra de abstração e concentração por parte do ouvinte permanecem necessários. Do outro lado, aguardando pacientemente, a alegria de perceber-se como parte de um universo que escuta a si mesmo, que observa a si mesmo [3].
John Carpenter & Alan Howarth: Halloween III - Season of the Witch (Original Soundtrack Recording)
"Happy happy Halloween, Halloween, Halloween, happy happy Halloween, Silver Shamrock!" Já escrevi anteriormente que das trilhas-sonoras do John Carpenter a minha favorita é a do The Fog, porém a que ele escreveu junto com Alan Howarth para a adorável bizarrice que é Halloween III não fica muito atrás. E esse jingle — "Happy happy Halloween, Halloween, Halloween, happy happy Halloween, Silver Shamrock!” —, nas duas últimas semanas cheguei a temer que só conseguiria tirá-lo da cabeça se me submetesse a uma cirurgia cerebral (cirurgia de extração total do cérebro, no caso).
Spy V Spy - Trash the Planet
Finalmente, nos últimos dias de outubro, dias de Halloween e de Tangerine Dream, algumas das músicas deste disco que adoro do Spy V Spy, Trash the Planet, começaram a se infiltrar por entre os sintetizadores e as trilhas-sonoras de filmes de terror que prevaleciam em meus pensamentos. Uma rápida olhada no tracklist é suficientemente esclarecedora: Hardtimes, What the Future Holds, Clear Skies, A New Start... Encarei como se fossem chamados de volta à realidade — à perplexidade, às esperanças e às derrotas de nossa dura realidade, depois de alguns dias de música escapista e fantasiosa. Clear Skies, em especial — nem de longe minha favorita neste disco —, vinha-me à mente o tempo inteiro, sua evocação agravada talvez pela proximidade do verão… Já houve um tempo em que as estações demarcavam rigidamente minhas audições (heavy metal no verão, por exemplo, nem pensar); neste novo modo de viver em que atualmente nos vemos forçados a nos adaptar isto talvez vá se embaralhar um pouco, modificar-se como tudo o mais, e o arco de música de meus próximos dias seguirá, provavelmente, indo da francesa Eliane Radigue aos australianos do Spy V Spy, passando pelo Tangerine Dream e pelo Bon Jovi que também andei ouvindo nos últimos dias, mas que pouparei vocês de lerem sobre.
[1]: “Adquirir”, por ora, significa apenas a disciplina de uma série enorme de downloads. Neste nosso momento, nesta nossa economia, neste nosso país — neste nosso pesadelo, enfim — é o que dá de fazer. Futuramente, quem sabe, começo a ocupar os poucos espaços livres da estante de discos com mais CDs e mais vinis do Tangerine Dream. ↩
[2]: Se você sentir algum estranho receio antes de clicar neste link, saiba que seu mau pressentimento não é injustificado. Não clique; basta a informação de que o catálogo do Tangerine Dream pode ser dividido em diferentes “eras” segundo diferentes “categorias”. ↩
[3]: Esta maravilhosa ideia de um “universo que observa a si mesmo”, obviamente, não é minha — é de Alan Watts. ↩
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