Dos usos e benefícios de Beethoven
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:
Crédito(s): Beethoven nears the end, de Oswald Charles Barret, copiada aqui.
Texto:
Nos restaurantes do vão do Mercado Público e sob as sombras das marquises do principal calçadão da cidade; nas conversas tranquilas dos mais velhos ao pôr do sol na praia, as mãos livres cruzadas às costas e os pés enfiados até a canela na areia mole da beira d’água, e também na rodinha de jovens pais e jovens mães que batem papo enquanto observam os filhos pequenos brincando nas marolinhas finais da respiração do mar; nas dunas ferventes e ofuscantes perfumadas pelas ervas que os grupinhos dispersos aqui e ali usam para evocar o espírito de Bob Marley; nos debates regados a cerveja e cachaça artesanal nos botecos ao redor da Lagoa, e em todos os demais bares e também no burburinho do comércio do centro da cidade, e até mesmo nas barbearias que agora existem tantas quantas são as farmácias — por toda Florianópolis não se fala em outra coisa que não seja os 250 anos de nascimento de Beethoven. Isso foi um sonho que eu tive, claro. Não sei sobre o que andam conversando os moradores desta cidade, exceção feita ao calor infernal que vem fazendo, que sobre isso ouve-se pessoas falando até mesmo com seus cachorros e não raro sozinhas. Beethoven, contudo, me parece razoável supor que não consta entre os tópicos correntes na vida da sociedade ilhoa — mesmo que estes tópicos ganhem algum colorido de assuntos e idiomas e sotaques com os turistas que, nesta época do ano, mais que duplicam a população da cidade —, ainda mais agora com a proximidade do carnaval. E foi ao lembrar do feriado de carnaval, uns dias atrás, que me ocorreu organizar um tributo pessoal ao mais ilustre dos compositores, ao mais imortal dos imortais que já morreram. Esquematizei a coisa toda no papel e comecei-a na semana passada com a audição do ciclo completo de suas sonatas para piano na leitura de Fazil Say. Já conheço-as todas pelas mãos de outros pianistas, mas nunca é demais acrescentar novas versões à memorabilia pessoal, afinal, se é pertinente agrupar um tipo de música e determinado autor para organizar listas de preferências (as sinfonias de Mahler, os quartetos de Bártok etc.), então, para mim, nada é maior do que o conjunto das 32 sonatas para piano de Beethoven. Como se fosse pouco dizer que é a maior das obras musicais, elas exigem que se escreva ainda algo sobre o ser humano, pois com esta nossa complexa e tumultuada condição — e não sendo isso necessariamente uma redundância, não para quem escuta tão amplo espectro de música como eu escuto, das mais comezinhas às mais pretensiosas — com nossa humanidade elas se entrelaçam e confundem como acontece com pouquíssimas outras obras, musicais ou não. É como o arco de uma vida em toda sua vasta gama de sensações, ou o arco de várias vidas paralelas, pois por se assemelharem também com a pluralidade das formas de se viver e também na multiplicidade das conexões que se estabelecem entre as vidas — mesmo as conexões nascidas dos mais breves, mais truncados e fugazes momentos — também as sonatas parecem tecer uma rede onde cada peça acaba sendo mais do que ela é sozinha, onde cada uma tem o seu começo e meio e fim próprios e ao mesmo tempo é complementada ou mesmo ampliada por alguma outra, coisa que provavelmente algum poeta de imaginação mediana já deve ter dito igual das vidas humanas. Para comentar sobre a grandeza dessa obra eu me sinto muito fajuto, sinto-me muito pior do que um poeta de imaginação medíocre, mas tentar ao menos esboçar a dimensão de sua beleza e de seus benefícios espirituais me parece uma tarefa, mesmo que toscamente executada — mesmo que rendendo apenas uma vaga silhueta, um borrão de traços rápidos e grosseiros —, crucial nestes nossos tempos de inacreditável estupidez e boçalidade, neste nosso vórtice de violência e barbárie. Todos deveríamos conhecer estas sonatas de Beethoven, e mostrá-las uns aos outros. Quase nada escapa deste magnífico painel de sons, desta multidão de prismas e melodias e de compassos e humores que, em sua exuberância ultra-criativa mas também na intimidade de seus silêncios e de suas notas quase mortas, podem ajudar a quem ouvir-lhes com atenção a apaziguar muitas das incertezas e hesitações que desequilibram nossas almas, a alinhar estas vozes todas que carregamos conosco em perpétuos atrito e contradição, a preencher suas falhas e fissuras, a desvendar, enfim, as encruzilhadas destes nossos pensamentos e ruminações sem fim. E daí, a corrigir os rumos do mundo. Beethoven nos deu os instrumentos para tal, mas a renovação de seus esforços é sempre bem-vinda. Fazil Say é um pianista e compositor turco jovem ainda — nascido em 1970, tem agora 50 anos —, que parece caminhar a passos largos para se tornar um nome bastante importante, para além da notoriedade contemporânea. Um dos meus CDs de música clássica favoritos é a parceria dele com a violinista (e também favorita) Patricia Kopatchinskaja no qual a dupla interpreta peças de Beethoven, Ravel e Bartók, além de uma intrigante sonata de autoria do próprio Say. Sua interpretação destas sonatas para piano de Beethoven é colorida e intensa, como deve ser, fiada na tradição dos grandes mestres (com alguma ousadia apenas na abordagem aos movimentos lentos), e por mais que nossas devoções a nomes como Maurizio Pollini e Wilhelm Kempff tentem nos tornar comedidos nos elogios ao jovem turco, a verdade é que, ao menos para mim, por enquanto está difícil colocar as versões de Fazil abaixo das deles. Bem, estou na oitava ainda, e estou ouvindo uma por dia; faltam algumas das essenciais que talvez favoreçam ou desfavoreçam essa opinião, vejamos. Tenho ainda aqui comigo as versões do austríaco Friedrich Gulda, que também nunca escutei antes e já estão inclusas no roteiro desta minha maratona de Beethoven, mas antes de reiniciar o ciclo das sonatas pelas mãos de Gulda, planejo atravessar todas as nove sinfonias e os quartetos de cordas beethovianos, um vasto oceano de música que, hoje, entendo ser a esperança final da humanidade, a salvação através da música, em especial daquela que nos legaram os gênios que em meio às nebulosas intuições de suas breves e caóticas vidas — premonições transformadas em fé, trabalho e morte — perceberam eles, de um jeito ou de outro, que só através da beleza nós teremos alguma chance. Já descartamos os bens intrínsecos à tolerância, à igualdade social e ao respeito à natureza; se quisermos sobreviver, que não descartemos Beethoven.
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