Dying Days
Seu browser está com uso de JavaScript desativado. Algumas opções de navegação neste site não irão funcionar por conta disso.

Discos do mês - Agosto de 2019

Fabricio C. Boppré |
Discos do mês - Agosto de 2019

Egberto Gismonti - Sol do Meio Dia

Ah, é esse o Brasil que eu adoro, o Brasil pelo qual nutro aquele tipo de carinho íntimo e profundo que, na falta de melhores termos para enunciá-lo, as pessoas costumam dizer que o objeto de seu afeto faz parte delas mesmas, está em seu sangue e em seu espírito. Este é o Brasil que faz parte de mim, e eu faço parte dele: o pedaço de terra e a gente simples desenhados pela música de Egberto Gismonti e de Naná Vasconcelos, de Pixinguinha e Cartola; o Brasil da Amazônia, do Boitatá, do boi-de-mamão e do Sítio do Picapau Amarelo; o Brasil dos índios e das palavras indígenas, do cacau e da mangaba, das taperas e dos aracuãs; o Brasil do mar quente lá em cima e frio lá embaixo, de Villa-Lobos e d'O Trenzinho do Caipira; da macumba, do café, da capoeira e do Garrincha. O Brasil que vai sendo destruído e esquecido. Benditos sejam Egberto e Naná, Chico e Gil, Clara e Elis, Mônica Salmaso e Gal Costa, Moacir Santos e Tom Jobim, Guinga e Ary, benditos estes cantores e compositores e estas cantoras e compositoras que cantaram o Brasil como ele era em cada um de seus tempos e cenários, e assim, sem o saber, ou sem que tivesse sido esta a intenção, garantiram às gerações futuras um maravilhoso álbum de fotografias sonoro onde é possível vislumbrar o que já foi um dia este país e o que poderia ele ter sido, e aos outros que já vivem e que chegaram algum dia a testemunhar e a acreditar nisso tudo, para estes temos aí um meio de reunir as forças e as esperanças para continuar lutando e resistindo, para que não tenhamos que acrescentar, em breve, à sentença “aquilo que poderia ele ter sido”, a conclusão definitiva “mas nunca o será".

Marillion - The Thieving Magpie

Creio que o Marillion não seja nem de longe a coisa mais embaraçosa que eu costumo escutar, tantas são as, digamos, "peculiaridades" do meu cardápio musical… Não restam dúvidas, contudo, de que Marillion é embaraçoso o suficiente para que eu, se desse tipo de pudores sofresse, não saísse por aí dizendo que gosto, e gosto muito da banda. Eu certamente não relataria aqui que nas últimas semanas ouvi umas quatro ou cinco vezes a este disco ao vivo de 1988, The Thieving Magpie, e que amo intensamente o segmento formado por Pseudo Silk Kimono, Kayleigh e Lavender, as três retiradas do Misplaced Childhood, disco que é um dos meus favoritos de todos os tempos. Eu definitivamente nunca revelaria que um disco do Marillion é um dos meus favoritos de todos os tempos! Nada disso eu sairia por aí dizendo e escrevendo, e continuaria escutando à banda em segredo, frequentemente, em especial durante estas seções de trabalho mais repetitivo em que é possível deixar uma parte do cérebro desconectada da tarefa em andamento para se divertir com uma música recreativa e estimulante, pouco exigente, cheia de imagens fáceis e memórias queridas.

Alban Gerhardt - Bach: The Cello Suites

Já faz tempo, foi lá no começo do mês, e o começo de Agosto, no momento em que escrevo isto, parece enterrado no passado há anos. Mas disso eu me lembro bem: enquanto escutava à versão do alemão Alban Gerhardt para as miraculosas suítes para violoncelo de Bach, eu pensava, impressionado: aqui está a melhor das versões dentre todas as que eu já ouvi. Já escutei a algumas dezenas, muitas delas excelentes, não poucas excepcionais, mas eu nunca chegava a concluir, ao fim de cada um daqueles discos, que havia acabado de escutar a uma versão que eu chamaria dali por diante de a minha predileta. Nunca havia motivos para preferi-la à anterior, por exemplo; para estas peças, nunca apareceu-me um correspondente ao que é Glenn Gould para as Variações Goldberg, ou seja, o favorito absoluto. Isso até escutar a este disco lançado pela Hyperion em Abril deste ano. Não dá de dizer que a excelência de Gerhardt é do mesmo nível da de Gould — este último habitava a esfera restrita e imortal dos gênios — porém dá de dizer que o violoncelo de Gerhardt é como um animal enorme no meio da sala, um mamífero vivo e inquieto de hálito quente e respiração sonora, cuja vida se faz perceber o tempo todo, mesmo enquanto você não o olha diretamente, mesmo se você evita totalmente seu olhar. Essa música, na verdade, escapa sob formas diversas de qualquer limitação física, qualquer compartimento onde se lhe queira aprisionar: uma espécie de touro resfolegando na minha nuca foi o que eu imaginei naquela ocasião, mas na próxima materialização pode muito bem ser algo completamente diferente. Só espero que não seja nada tão pesado quanto da primeira vez, pois tenho a impressão que as madeiras velhas do assoalho aqui de casa ficaram severamente danificadas sob o peso daquele animal.

Comentários:

Não há nenhum comentário.

(Não é mais possível adicionar comentários neste post.)