Eu comprei um discman
Fabricio C. Boppré |Texto:
Meus amigos andam tendo filhos, e alguns já os têm entrando na adolescência (os filhos), garotões e garotonas que em geral se parecem mais com as mães, mas eu sempre vejo algo nos olhos ou no movimento da bochecha que me faz lembrar do pai quando criança ou adolescente, quando jogávamos bola na rua e assistíamos aos filmes do Jean-Claude Van Damme sentados no chão da sala. Outros evoluem em suas carreiras, trocam de emprego, medem salários; outros investem dinheiro não sei onde (o mundo do dinheiro é um mistério impenetrável para mim) e acumulam patrimônio. Eu, enquanto isso, dia desses comprei um discman. Isso mesmo, um discman. Aposto que você que me lê sequer sabia que eles continuam sendo fabricados, certo? Pois bem, continuam, mas é seguro apostar que não por muito mais tempo, e por isso resolvi adquirir um, provavelmente o último discman da minha vida. Há um pouco de nostalgia nisso, evidentemente — nostalgia, afinal, é elemento protagonista em minha vida de escutador de música — mas há também planejamento cauteloso e talvez um quê de paranóia. O que ocorre é o seguinte: quero garantir a posse de uma certa quantidade tranquilizadora de maneiras de se escutar aos meus milhares de discos (às fitas cassetes eu já me resignei em não poder mais ouvir, a despeito de ter ainda em casa umas quarenta ou cinquenta guardadas) e assim evitar que um dia eu me veja simplesmente impossibilitado de botar um CD para tocar, algo que seria como não poder mais me alimentar. Não que eu acredite que vá testemunhar, pelo menos não no meu tempo restante de vida, ao fim definitivo dos aparelhos de som, e dos vinis e dos CDs, e o triunfo final da música digital que se escuta unicamente via computador ou smartphone — não chego a cogitar esse revés para tão breve, ainda que o considere inevitável. Porém a disponibilidade de aparelhos de som decentes para se comprar, pelo menos nas cidades de porte médio do Brasil, me parece já ter evaporado, assim como as lojas de discos praticamente sumiram do mapa. Descobri isso quando a gaveta de CDs do meu principal aparelho de som em casa deixou de funcionar, uns três ou quatro anos atrás. Achei uma autorizada Sony que a consertou; o remendo, contudo, funcionou por apenas alguns meses. Abri eu mesmo o aparelho e apertei um parafuso aqui e outro ali, coloquei uma gota de óleo cá e outra lá, e consegui fazê-la funcionar novamente; e novamente, depois de dois ou três meses, a gaveta tornou a travar. Não conseguindo mais dar jeito, saí para comprar um substituto, mas só achei aparelhos pavorosos, de péssima qualidade sonora (mesmo para mim, cujo nível de exigência nesse quesito talvez seja surpreendentemente baixo ao se considerar o quão intensamente apaixonado sou por música), cheios de luzes piscando por todos os lados e caixas de som de aparência horrenda, e a grande maioria — isso para mim foi um choque — desprovida de entrada para headphones. É como se fossem feitos apenas para piscar e incomodar vizinhos. Preferi ficar com meu velho aparelho danificado mesmo: os vinis, afinal, continuam funcionando através de uma turntable e um pré-amplificador separados, e os CDs eu consigo executá-los através de um notebook conectado ao aparelho por via de um cabo auxiliar. A qualidade do som das caixas desse aparelho Sony (comprado, se eu não me engano, em 2005) é infinitamente superior a do melhor dos aparelhos que achei à venda em Florianópolis, por isso compensa manter esse arranjo cheio de fios e acessórios ocupando um espaço imenso na sala de nosso apartamento. Isso tudo, claro, porque eu não me rendo à música no computador: sou graduado e pós-graduado em pirataria, tenho incontáveis gigabytes de arquivos mp3 e flac nos meus computadores e discos externos (Spotify e coisas do tipo, nem pensar — tenho um conhecimento apenas superficial sobre como a coisa funciona, e suficiente para saber que não é para mim), porém esses arquivos todos são apenas contingência e quebra-galho, é música para se ouvir enquanto trabalho, ou para ter no celular convenientemente enfiado no bolso e desse modo possível de se levar para qualquer canto, e também para experimentar novos sons, conhecer bandas e compositores antes de investir minhas modestas reservas monetárias na compra de seus discos. Escutar música da maneira apropriada continua sendo, para mim, algo a ser feito da sala de casa, na companhia dos meus discos e do meu velho e alquebrado aparelho Sony. E agora, em casos emergenciais ou excepcionais, conto também com um discman: para o dia em que mais alguma coisa do monstro do Frankenstein que é este aparelho de som falhar1, ou mesmo em viagens, pois adoro a ideia de selecionar uns dez discos para levar comigo em alguma aventura longe de casa e fazer deles uma trilha sonora a ser registrada na memória junto das novas paisagens e dos novos aromas, das novas cores e das novas pessoas. A qualidade do som desse pequeno aparelho está longe de ser uma maravilha, mas aliado ao bom headphone Sennheiser que tenho, a dupla me é plenamente suficiente: escutei já dois CDs com ela, o Communiqué do Dire Straits e o Rubycon do Tangerine Dream, e me diverti à beça, como uma criança brincando com seus presentes recém-desempacotados no dia do Natal — talvez possa mesmo dizer que me diverti como nos dias em que ganhei meu primeiro walkman e depois meu primeiro discman, anos e anos atrás. Acho que posso ficar tranquilo — não creio que chegará o dia em que não poderei mais ouvir meus discos. Continuo alerta, no entanto, e talvez um pouco paranóico… Um pouco, não muito: não deve haver mais ninguém que tenha um mínimo de bom senso, afinal de contas, a não perceber que querem nos tirar tudo — a educação, a arte, a memória, sem contar a capacidade de ler e de pensar que no Brasil parece que ninguém mais consegue lembrar se de fato algum dia já a tivemos — nos amputar de todas as faculdades mentais e transformar a todos em usuários do Spotify e residentes das redes sociais. Desta devastação em andamento cada um se protege como pode.
1 Na verdade, continuo planejando a compra de um novo aparelho de som, o que provavelmente vai acontecer via internet. Tenho adiado isso devido à minha resistência em comprar online algo dessa importância, sem poder testá-lo antes, tocá-lo, vê-lo em detalhes. Não resta saída, contudo. Ao menos há centenas de sites especializados por aí com resenhas, dicas, comparações, etc. Depois é só torcer para que o aparelho não seja danificado durante o translado até em casa (coisa que eu, francamente, não consigo conceber ser possível). ↩
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