Aqui de longe
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:
Crédito(s): Vista do castelo de St. Andrews, Escócia.
Texto:
Ora essa, é não é que vim parar numa cidade altamente musical? Minúscula, gelada, cinza e sépia mesmo à beira do mar — mesmo o próprio mar —, fustigada por chuvas e ventos vindos de não sei que inferno glacial e em quantidades que parecem originalmente dimensionadas para encharcar e esfriar todo um continente, porém devido a alguma antiga maldição viking ou talvez, mais ordinariamente, algum raro fenômeno meteorológico (fico com a hipótese viking), vêm desaguar todas aqui, vêm açoitar exclusiva e inclementemente este pequeno pedaço de terra ao norte da Escócia, onde por obra e arte de toda esta hostilidade climática a população de corvos parece ter se tornado maior do que a de humanos. Tudo isso, sim, mas altamente musical. Todo cidadão desta cidade deve tocar algum instrumento ou cantar em algum coro, não é possível. Estou por aqui há duas semanas e já assisti sonatas para flauta e cravo de Bach e Telemann, peças de Couperin para cravo solo e de Schumann e Parry para órgão, e ainda Bach transcrito para órgão por Max Reger e o oratório Messiah de Händel, com direito ao cortês povo escocês se levantando — parte dele, ao menos — durante o famoso coro Hallelujah, tradição que remonta às primeiras apresentações da peça lá se vão quase três séculos, conforme ouvi uma senhorinha explicar para dois alemães que ficaram, assim como eu fiquei, sem saber o que fazer quando tanta gente pôs-se subitamente de pé. Eu também me levantei, afinal, mas foi para poder continuar assistindo ao coro e à orquestra e não por deferência ao rei ou à igreja ou seja lá quem for. E não deixei de perceber que algumas pessoas ficaram gravemente sentadas e imóveis, marcando suas posições com mais afinco e convicção do que aqueles que cumpriram o cerimonioso protocolo. Hoje à noite a St. Andrews Symphony Orchestra prestará homenagem aos 100 anos de nascimento de Leonard Bernstein; confesso que não sou lá grande fã da música circense de Bernstein, mas como no programa tem ainda Prokofiev — e esse sim eu tenho em altíssima conta — estou pensando em ir lá dar uma espiada e aproveitar para novamente sentir na pele, na hora de ir embora, os prenúncios de neve que julgo sentir no frio silencioso das horas mais avançadas da noite. Bem, talvez não haja prenúncio algum, talvez esse frio nem seja grande coisa perto do que ainda está por vir lá para fins de dezembro, início de janeiro; talvez tudo isso seja apenas minha imaginação cheia de esperanças. Fato é que o frio, a possibilidade de neve, a noite invernal européia com seus halos de luzes amarelas, seus vultos de chapéus e sobretudos entrando e saindo por portas que revelam brevemente, atrás de si, pequenos redutos humanos, resguardados e aquecidos, bebendo e conversando à vozes baixas — tudo isso só favorece ainda mais meu estado de espírito. Amanhã, quem sabe, saímos para investigar uma misteriosa “vibrante cena jazz” sobre a qual li em algum lugar, mas não vi ainda nem sinal — talvez esteja escondida em alguma das poucas vielas que ainda não percorremos, semi-oculta na escuridão que, nesta época do ano, começa a descer lentamente sobre a cidade a partir das três horas da tarde. Nada disso foi planejado: acabamos decidindo morar aqui meio de improviso, em cima da hora, sem esconder certos receios sobre o que haveríamos de fazer numa cidade que atravessa-se toda, de uma ponta a outra, em menos de meia hora de caminhada. Eu já me ia esquecendo, pelo visto, das benesses do mundo civilizado… Será, enfim, além de uma temporada feliz e tranquila — o que seria de qualquer modo (penso eu agora) só pelo fato de estarmos longe — será também uma temporada de música, talvez ainda mais do que sempre o foi a minha vida, essa estendida temporada musical pontuada por intromissões ocasionais do que de mais há no mundo, e nos últimos tempos demasiadamente pelo o que o mundo tem de pior. Espero anotá-la frequentemente por aqui.
Comentários:
Gostei muito da narrativa com seus detalhes. Até me transportei, ao menos um pouco, para aí. Muito legal. Mas cuidado com frio. Demais é muito doentio e pernicioso para doenças respiratórias, às vezes fatal.
Pai
Fabrício que bacana! Tão bom ler um relato tão bem escrito, a desvendar pedacinhos de terra tão distantes que nem imaginamos crer que existam. Felicidades para vocês e cuidado com o vento sul, como diria a vó! Beijo grande da Tia!
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