Dying Days
Seu browser está com uso de JavaScript desativado. Algumas opções de navegação neste site não irão funcionar por conta disso.

Vinhetas contra o Spotify

Fabricio C. Boppré |
Vinhetas contra o Spotify

Crédito(s): detalhe do mapa Vniversale descrittone di tvtta la terra conoscivta fin qvi, publicado por F. Bertelli em 1565. Copiado daqui.

Vinhetas contra o Spotify, mas não necessariamente a favor dos discos físicos ou apenas de um ponto de vista muito pessoal e particular a favor dos discos físicos

Aposto que para a maioria das pessoas que passam aqui em casa estas fileiras todas de CDs, vinis e fitas cassetes, que ocupam uma parede quase inteira de nossa sala, se assemelham a uma inútil montanha de plástico e papel, um arcaísmo obsoleto que poderia muito bem ser substituído por um aparador com retratos e souvenires de viagens, vasos de cactos e violetas, etc. Afinal, ao que parece, toda a música do mundo — ou, supostamente, toda a música da qual deveríamos gostar — está no Spotify a um custo mensal módico. Nossos visitantes estão perdoados: eles não têm como saber do longo lastro subjetivo que possuem estes discos, e muito menos compreender o quão mais importante para nós é este lastro em comparação à tal conveniência do Spotify.

A ideia de ter uma conta no Spotify nunca sequer me ocorreu. Esta marca, para mim, é apenas mais uma no cardápio indigesto de big techs e redes sociais que pouco a pouco parecem se tornar o novo esteio da vida pública, e eu continuo teimosamente fora desse novo modo de viver. Creio que até bem pouco tempo atrás seria de bom tom pedir desculpas pelo meu reacionarismo; de uns tempos para cá, contudo, me parece que as pessoas começam a compreender como estas empresas funcionam e o mal que elas nos fazem. Será que já posso me gabar da minha rebeldia visionária? (Mas devo admitir que não terem percebido desde o começo o quão mesquinhas são as intenções de um sujeito desprezível como Mark Zuckerberg, isso para mim é algo realmente espantoso.)

Embora fisicamente seja apenas isto — quilos de plástico e papelão, papel e vinil —, em meu cérebro vive uma espécie de contraparte destas fileiras de discos, uma correspondência digamos metafísica que não tenho sequer como começar a pesar ou qualificar o valor que tem para mim. Arrisco comparar com uma espécie de mapa de extensão vasta e complexa, com recantos ainda inexplorados e outros que conheço como a palma de minha mão (bem melhor do que isso, na verdade), parte cartografia do mundo e parte cartografia minha e nossa (minha e de minha companheira), e também a confluência dessas cartografias e histórias. São, individualmente, pequenos objetos físicos, mas que pesam cada um incontáveis quilos em termos de memórias, sensações e significados. No todo, é refúgio, amparo e companhia vital. Tenho um pouco de pena das pessoas que ao invés de algo assim possuem apenas uma conta no Spotify.

O que me repele no Spotify e no Facebook e demais conveniências da vida moderna é a impressão de que seus algoritmos e truques mercadológicos tendem a normatizar os indivíduos que as utilizam, e também, por conseguinte, normatizar e uniformizar os produtos e serviços oferecidos. Individualidades não são bem-vindas neste modelo de negócios; multidões, por outro lado, são quase que uma exigência. E para atrair essas multidões o que elas têm a oferecer são vantagens para lá de duvidosas que eu resumiria assim: assinando nosso serviço, você não vai mais precisar passar pela provação que é interpretar o mundo à sua própria maneira e seguindo a sua própria intuição. Em troca de sua identidade e/ou de um pequeno valor mensal, cuidaremos disso para você; lhe entregaremos a música que você deve ouvir e a personalidade que você deve ter. Você não estará mais sozinho; você será como todos. Multidões aplainadas desta forma é o paraíso final de certo modo capitalista de ver o mundo — e também, temo, o fim das individualidades, da criação original e sem concessões, da música feita para espíritos afins e não para o lucro, da arte como fim e não como meio. Talvez eu esteja exagerando... Talvez não. Há ainda outras questões éticas e sociais não menos importantes. O que sei é que prefiro não fazer partes destas engrenagens. O argumento da conveniência, no caso do Spotify, não poderia me interessar menos: música, para mim, não se mede nesses termos, não é commodity; música é uma aventura que informa praticamente todos os aspectos da minha vida e na qual estou por minha conta e risco.

Minha coleção de discos não é grande: perto de colecionadores sérios, é uma ninharia. Tenho muitos mais discos digitais nos meus computadores do que CDs e vinis nas estantes. Mas ela é singularmente minha, ou talvez eu possa dizer que ela sou eu. Nela tenho uma espécie de registro que abrange três quartos da minha vida, incluindo aí o tanto que vi e vivi e escutei nos últimos 15 anos, período em que tive a sorte de poder viajar bastante mundo afora. As idiossincrasias não são poucas. Tenho ainda meu primeiro disco de todos e as fitas cassetes de música sertaneja que meus pais ouviam no carro; tenho discos comprados com artistas de ruas, retirados de balaios de palha, e discos comprados em Filarmônicas cujos prédios parecem concebidos para intrigar os alienígenas que algum dia visitarão as ruínas deste nosso planeta. Em geral tento descolar as etiquetas com preços e limpar com álcool a sujeira deixada por elas no acrílico das caixinhas dos CDs, mas as etiquetas dos discos comprados na Amoeba Records eu deixo. Tenho discos que me lembram neve e frio intenso e outros que me lembram férias de verão na praia, e discos (de música clássica) com marcadores que indicam o ponto em que interrompi a leitura de seus livretos. Discos que são sessões de exorcismo e outros que não vou escutar nunca mais; discos para sábado à noite e discos para acompanhar a leitura. Tem lacunas (uma lista no computador gerencia isso) e itens duplicados. Discos que são como runas, indecifráveis, outros que são portais. Já não tenho mais discografias completas desta ou daquela banda — não tenho mais apegos deste tipo — mas tenho CDs e vinis lacrados ainda, muitos, como áreas obscurecidas de uma mapa incompleto. A lista de peculiaridades e excentricidades poderia ir bem mais longe, mas encerro-a por aqui crendo já ter demonstrado meu ponto: uma coleção de discos construída ao longo de anos é algo de valor subjetivo inestimável, um tesouro cuja comparação com um serviço online simplesmente não cabe, por mais que este lhe prometa bilhões de faixas e facilidades sem fim.

Dos itens mais queridos nesta coleção: versões em vinil de Time Fades Away e Tonight’s the Night do Neil Young, presentes de um amigo canadense (“no Canadá você encontra estes discos nos cestos de promoções”, ele me explicou na ocasião). Neil Young, este que você não encontra no Spotify porque entre Neil e delinquentes que espalham mentiras que custam vidas humanas, os donos do serviço preferem estes últimos.

Está bem difícil comprar discos atualmente, com todos estes nossos problemas e a pandemia. Mas continuo obstinadamente na construção deste meu mapa, de preferência via bandcamp (para quem não conhece e pensa que é algo parecido com o Spotify: informe-se aqui), quando posso me dar ao luxo, já que as coisas em dólares e euros têm saído bastante caras para nós pobres brasileiros. No ano passado comprei os novos discos de Sarah Davachi e Lucy Railton, discos que acrescentaram à coleção o capítulo sombrio destes dias que vivemos, dias confusos e difíceis, mas também dias muitas vezes salvos pela música. Na semana passada, de uma loja virtual que opera a partir do Rio de Janeiro, comprei um disco que traz gravações de Guinga e Mônica Salmaso em shows feitos no Japão. O que este disco significará em minha coleção, contudo, eu ainda não sei dizer; suspeito que seu significado será revelado somente dentro de alguns meses, em audições que deixarei guardadas para o futuro.

Finalizo dizendo que, na verdade, não me importo que as lojas de discos estejam fechando e que o futuro dos próprios discos físicos seja incerto. De um ponto de vista bastante pessoal, sempre que encaro este fato eu encaro minha própria finitude, e tento viver em bons termos com as duas. Em algum momento de nossas vidas o mundo nos ultrapassa, nos tornamos seres obsoletos aos quais todo o entorno não pode ficar ancorado para sempre. Discos são apenas objetos para armazenar música, e os objetos inevitavelmente mudam com o tempo; a música, pelo contrário, está na fundação do universo e vai continuar existindo de um jeito ou de outro para sempre. Se é destino dos discos sumirem, por mim tudo bem. Torço apenas para que achemos algo melhor do que o Spotify para colocar em seu lugar.

Categoria(s): Outros

Comentários:

Não há nenhum comentário.

(Não é mais possível adicionar comentários neste post.)