Dying Days
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E por falar em trilhas sonoras

Fabricio C. Boppré |
E por falar em trilhas sonoras

Crédito(s): imagem copiada daqui.

Parece até que eu gosto de ser do contra, mas ao menos eu tento me explicar. Vejamos: das obras compostas por Ennio Morricone, não é a do filme Il buono, il brutto, il cattivo a minha favorita. Seu famoso tema principal é compreensivelmente adorado por todo mundo — toda aquela irreverência em perfeita consonância com o espírito anárquico e exagerado dos spaghetti Westerns — porém o gênio de Morricone, tenho comigo, se encontra mesmo é na música de C'era una volta il West (no Brasil, Era uma Vez no Oeste). Um pouco mais comedida mas igualmente memorável, é aqui que a parceria de Morricone com Sergio Leone rende de fato uma experiência que transcende os limites estritos deste tipo de filme, em especial nas passagens orquestrais mais convencionais, que de tão bonitas e perfeitamente situadas no drama do filme quase nos fazem esquecer de que tudo aquilo é, em grande parte, uma comédia burlesca, uma grande paródia. Um Morricone mais ortodoxo é o ponto alto deste filme, mas também o Morricone surpreendente e inventivo do anterior dá as caras por aqui. Seu vasto arsenal de sonoridades cria quatro personagens inesquecíveis: quando soa a gaita de Harmonica, é como se das montanhas que circundam a ação multidões de fantasmas sedentos de vingança estivessem prestes a baixar. O tema de Cheyenne, pelo contrário, tem algo de apropriadamente simplório e mundano: é ele, afinal, quem tenta resguardar Jill na segurança deste plano terreno, apesar da misteriosa atração que a personagem de Claudia Cardinale parece sentir pelo plano mítico-infernal em que se movem Frank e Harmonica (Cheyenne sobre Harmonca: "People like that have something inside, something to do with death"1). Do grandioso ao circense, do emocionante ao fanfarrão, tem Ennio Morricone de todas as cepas para todos os gostos. No duelo final, Charles Bronson e Henry Fonda se enfrentando é um deleite, e mesmo que a gente saiba exatamente qual é o destino de Harmonica e qual é o de Frank (o filme é, no fim das contas, uma crônica dos arquétipos do mais arquetípico dos gêneros cinematográficos), o cruzamento de alguns dos temas musicais e seus devidos encerramentos, como se esperassem por este momento decisivo — toda a música deste prolongado duelo torna-o, ainda que inevitavelmente previsível, o mais inesquecível de todos os duelos. Não acho portanto exagero afirmar que se trata de uma obra tanto de Sergio Leone quanto de Ennio Morricone. Filme e música, no entanto, não encerram com Frank tombado e Harmonica vingado: ouviremos ainda uma vez mais o divertido tema de Cheyenne (no não-tão divertido desenlance de sua parte na trama) e, finalmente, o lindo tema de Jill, este sim fechando magistralmente a narrativa, Jill, a imigrante que alimenta e sacia a sede de trabalhadores mexicanos, americanos e indígenas, sem distinguir cor e origem daquele gente suada e variada, gente de todas as partes empenhada na construção de uma nova estação de trem e de um novo país. À vista do fato de que tal país hoje, no mundo real fora do cinema, tem pela segunda vez como presidente uma figura tão grotesca quanto o Frank fictício, música e filme acabam se tornando ainda mais melodramáticos, e também mezzo patéticos. É a essência dos spaghetti Westerns, mas o mundo real não precisava realçar isto de modo assim tão ostensivo.

1 Cheyenne após beber um café feito por Jill: "My mother used to make coffee this way: hot, strong and good". Esse quote não tem nada a ver com o que escrevo aqui, mas preciso deixá-lo mencionado pois adoro a frase e a enunciação de Jason Robards.

Categoria(s): Opinião

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