A vida e a morte em Schubert segundo Patricia
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

Crédito(s): Noite de Véspera do Ivan Kupala de Henryk Siemiradzki, copiada daqui.
Texto:
Uma parte de mim, de caráter mais racional, sente aversão pelas obras (filmes, livros, música) que tratam dos grandes temas: a vida e a morte, a origem de tudo, o destino da humanidade. Outra parte, mais xereta, sente uma irremediável atração. A objeção vem da certeza prévia de que tais obras não respondem e nunca responderão plenamente a nenhuma destas questões, pois a racionalidade assopra: não há respostas para coisas que sequer são perguntas. A atração, de sua vez, vem da curiosidade em observar as tentativas e vê-las falhar miseravelmente, mas no processo aprender algo sobre o humano, sobre as peculiaridades das tantas experiências possíveis, dos múltiplos pontos de vistas verbalizados pelos(as) artistas que se metem a tentar responder ou discutir tais coisas. 2001: A Space Odyssey é possivelmente o filme mais pretencioso de todos os tempos, e eu me arrepio toda vez que o revejo. No reino musical, as grandes sinfonias de Mahler e outros têm uma qualidade similar à obra de Kubrick e Clarke: elas fascinam e assombram desde que você trate de domar previamente a voz interior da razão que denuncia o patético de toda aquela grandiloquência. Ou que ao menos se sirva de um pouco de perspectiva. Citei algumas obras revestidas de grande pompa, mas há um nicho especial pelo qual tenho um afeto mais descomplicado: a música que não se furta a tais questionamentos sem deixar, contudo, de habitar o chão batido do povo comum, sem encerrar-se nas vetustas salas de concerto. E algumas obras do repertório clássico — não tenho como especular se com ou sem intenção — se prestam especialmente a este fim. Eu pensava nisto tudo enquanto assistia à performance de A Morte e a Donzela, de Schubert, por um pequeno conjunto de cordas em uma igualmente pequena igreja próxima de onde moro, construção modesta cujo interior foi pintado por um dos mais populares e queridos pintores de Florianópolis. O evento era gratuito; o público variado lotou o pequeno espaço. A peça de Schubert é das minhas preferidas: ela marca, junto com o quarteto de cordas número 8 de Shostakovitch, o início do meu interesse mais sustentado por música clássica. O tema da composição, como seu nome entrega de saída, é a morte, e no fim ela não elucida patavinas a respeito deste assunto sobre o qual todos nós, se não obsessivamente, ao menos muito frequentemente pensamos. Mas A Morte e a Donzela é linda — linda de morrer, alguém pode ressalvar. Seu primeiro movimento é como um flecha que captura o ouvinte e o traz de imediato para junto do drama, sem que a partir de então o largue durante um segundo sequer de seu desenrolar cheio de fraseados melodiosos e inesquecíveis, animados por melancolia serena e espasmos de virtuosismo. A execução dos músicos da OFiC foi muito boa, intensa e incisiva. Ninguém ali presente na audiência tornou-se mais sábio em relação à finitude humana, mas é certo que isso não diminuiu em nada os aplausos efusivos e o sorriso das pessoas enquanto deixavam o local e penetravam na fresca noite ilhôa. E assim uma peça do romantismo europeu do século 19 encontra um público no hemisfério sul dois séculos depois; um lamento lírico sobre a morte iminente distrai a noite de umas poucas dezenas de trabalhadores e estudantes cansados e cansadas prestes a se preparar para o dia seguinte, quando continuarão perfeitamente vivos assim como estavam no alvorecer daquele mesmo dia, indiferentes ao sofrimento de Schubert em seus últimos dias. E quem entendeu melhor do que todo mundo a riqueza desta peça e as possibilidades destes contrastes foi minha heroína Patricia Kopatchinskaja. Nas mãos de Patricia, A Morte e a Donzela, conforme gravada neste primor de CD, se transforma quase que em uma longa canção popular. Seu sabor folk é definitivo; duvido que mesmo Schubert anteviu isto. Intercalando os quatro movimentos originais com peças anônimas e de outros compositores, a releitura de Patricia dissipa a erudição sem deixar de tratar o tema com o respeito e a solenidade que merece. O povo também morre — celebremos a vida do povo. Na Igrejinha (assim conhecida pela comunidade), enquanto os músicos se preparavam para a apresentação tendo como fundo a visão de Hassis sobre a humanidade, não me saía da cabeça a segunda faixa deste CD, uma breve canção anônima cujo clima de vida pequena, campestre, sempre me comove. Ela dá o tom, emoldura o restante da música, que, embora tecnicamente exigente, dali por diante fala para todos os vivos, estabelece um diálogo com todos que temos o morrer como destino em comum. As pequenas peças seguintes de Dowland e Gesualdo, de forte teor piedoso, reforçam este compromisso; Schubert se acomoda entre elas, ergue a voz vez ou outra, clama aos céus, mas em minha mente está inscrito em definitivo entre o povo nas aldeias, e agora, na Igrejinha em Florianópolis.
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