Discos do mês - Janeiro de 2021
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

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Yo La Tengo - And Then Nothing Turned Itself Inside-Out
A infrequência com que cito o Yo La Tengo — se é que alguma vez já os citei — deve ser de longe a maior injustiça destes meus relatos mensais. Trata-se, afinal, de uma das minhas bandas favoritas, a quem ainda ouço com a regularidade que há tempos já não dedico ao Nirvana, ao Sonic Youth, ao Pavement, e a tantos outros nomes que pode-se considerar, de um modo ou de outro, irmanados ao trio formado por Georgia Hubley, Ira Kaplan e James McNew, e inquestionavelmente melhores ou mais importantes do que eles. And Then Nothing Turned Itself Inside-Out tem sido, nos últimos meses, um dos nossos discos favoritos para as noites de sábado: sua atmosfera de sonho e de doce nostalgia é o som perfeito para a luminosidade média que gostamos de manter nessas ocasiões, o jantar, o vinho, a leitura, etc. E ainda que de uma música que tão fácil e naturalmente se torna pano de fundo sonoro não se possa, na grande maioria dos casos, dizer que seja uma música muito especial, este álbum é a exceção à regra. Tears Are in Your Eyes, por exemplo, é dessas faixas que se inclui sem pensar duas vezes na trilha sonora da vida.
Muriel Grossmann - Reverence
Nas palavras da própria Muriel Grossmann — a líder do quinteto que assina o disco —, Reverence é um gesto de agradecimento e reverência à música africana, o que fica bastante evidente, mesmo para um amador como eu, na intensidade percussiva e rítmica de suas músicas. Contrabaixo (a cargo de Gina Schwarz) e bateria (Uros Stamenkovic) fazem do disco, quase que do início ao fim, uma verdadeira festança sonora. Porém uma outra influência — ao menos é o que parece para este, não é demais repetir, enorme amador que sou — uma outra influência latente ao longo de todo o disco é John Coltrane: as frases do saxofone de Grossmann lembram muito algumas de Coltrane, e aqui e ali uma certa aura cerimoniosa e mística, também muito Coltranesca, torna o álbum ainda melhor e mais hipnótico. (E mesmo correndo o risco de fazê-lo com isso parecer-se com um enorme trabalho de xerografia — coisa que ele não é — acrescento que também a presença de Alice Coltrane paira por sobre muitas das faixas.) Se você gosta seriamente de jazz, é razoável supor que você não seja tão desinformado como eu, que só fiquei sabendo da existência de Muriel Grossmann e de seus discos maravilhosos alguns poucos dias atrás; em todo o caso, se as circunstâncias da vida lhe conduziram a esta insólita situação, não perca mais seu tempo lendo minhas trivialidades e clique aqui.
Theatre of Voices, Ars Nova Copenhagen & Paul Hillier - Arvo Pärt: Creator Spiritus
Esse disco traz uma amostra muito bonita da música do compositor estoniano Arvo Pärt. Intercalando peças instrumentais e cantadas, Paul Hillier e seus grupos vocais Theatre of Voices e Ars Nova Copenhagen (Hillier é o diretor musical de ambos), reforçados pelo quarteto de cordas NYYD Quartet, traçam um rico panorama da arte de altíssima voltagem espiritual de Pärt, com direito a generosas doses de tudo aquilo que a torna tão especial: seus silêncios carregados e compassos meditativos, sua atmosfera de igreja antiga abandonada que ainda ecoa cânticos do passado (feixes de luz entrando pelos vitrais quebrados; arbustos nascendo por entre as rachaduras do piso; ícones inertes de olhos perfurados), seus instrumentos escassos e abstraídos mas sempre graves e concentrados. Uma música que inspira e respira religião — e, não obstante, capaz de sensibilizar os mais empedernidos dos ateístas, ou, pelo menos, aqueles com alguma tendência a se compadecerem das aventuras e desventuras da raça humana. E embora seja um apanhado de obras aparentemente sem relações mais diretas umas com as outras (há uma peça originalmente escrita em 1963; várias dos anos 1980, outras tantas dos 2000), o repertório do álbum tem um coração bem distinto: a faixa My Heart's in the Highlands, versão de Pärt para o poema/canção de mesmo nome de Robert Burns, um dos grandes heróis literários da Escócia. Nesta peça — como que o centro que irriga vida pelo álbum — a soprano Else Torp canta sobre uma base mínima fornecida pelo órgão de Christopher Bowers-Broadbent, sua voz realçada pelos repiques frios e mecânicos do instrumento. Há uma clara desconexão entre uma coisa e outra: Torp entoa o lamento (não há aqui malabarismos vocais virtuosos: a interpretação é sóbria, humana e contida), sofre estoicamente a distância entre as terras do norte da Escócia e o local não especificado onde ela se encontra atualmente (“My heart's in the Highlands, my heart is not here”), enquanto que o órgão preserva certa indiferença e soa como que o desdém das circunstâncias que são maiores do que os indivíduos, ou o som dos destinos inevitáveis. A canção é comovente como mero artefato humano, independente de interpretações ou catalogações (e apenas muito fragilmente pode ser chamada de "canção"); a interpretação de Torp toca qualquer um que já tenha sentido vínculo com algum lugar, ou que tenha a vivência de alguma distância amarga, qualquer um que já tenha sentido qualquer espécie de desconexão. São temas universais, mas para aqueles que já tiveram a sorte de conhecer aquela parte do mundo, tudo isso torna-se imediatamente ampliado: se já é difícil para o turista ocasional não deixar uma parte de seu coração por entre as montanhas e vales das Terras Altas escocesas, imagine-se a aflição de quem perto delas nasceu e viveu e teve então que abandoná-las…
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