Discos do mês - Março de 2020
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:

Texto:
Maurizio Pollini: Frédéric Chopin - Études Op. 10 & Op. 25
Chopin é um daqueles compositores que lá do fundo de suas mortes ressuscitam quando ouvimos algo de sua lavra. Há uma presença indefinível na música, abraçando-a; eu diria que é o fantasma de seu criador, que aparece satisfeito quando evocado com respeito e habilidade. Pollini é um dos pianistas que sabe como fazê-lo, um dos grandes médiuns de Chopin — o maior, eu diria, junto com Martha Argerich, dentre os não muitos que eu conheço. Ouça a última faixa deste disco, o estudo número 12 da Op. 25, para constatar a excelência corpórea e concreta de Pollini e também a presença etérea de Chopin, o espectro do polonês sussurrando o som que enlaça as notas do piano e as transforma em algo mais, algo da ordem da feitiçaria, ou dos sonhos dos alquimistas. Li dia desses em algum lugar alguém sugerindo que se durante a quarentena todo brasileiro lesse um livro de história, nós nunca mais elegeríamos um presidente fascista. Pois eu digo que se além de lermos tal livro todos nós ouvirmos a este disco atentamente, dia após dia, durante todo o período da clausura, não somente ao vírus da burrice nos tornaremos imunes, mas também a toda e qualquer moléstia psicológica, intelectual e espiritual possível, e sabemos que não são poucas as que afligem este pobre povo brasileiro… (Quando ao coronavírus, não tem jeito, temos que permanecer em casa.)
Joni Mitchell - Ladies of the Canyon
Eu adoro ler ou escutar músicos discorrendo sobre seus discos favoritos, e não perco nenhum episódio da série de vídeos What’s in my Bag? da Amoeba Records nem deixo de ler nenhum dos posts da Baker’s Dozen do site The Quietus. Leio e assisto mesmo quando o entrevistado ou entrevistada é alguém de quem eu nunca ouvi falar (o que, no caso do Baker’s Dozen, é a grande maioria). Nestes dois canais, o disco mais frequentemente citado, com folga, é o Blue da Joni Mitchell. É surpreendente, não? Nada de Beatles ou Rolling Stones, Bob Dylan ou David Bowie — nada de clássico bombástico ou multi-platinado de homem ou grupo de homens algum: a canadense Joni Mitchell e sua música íntima e tranquila. Bem, na verdade, não é tão surpreendente assim. Mas o caso é que, incentivado por essa preferência tão contundente, eu já escutei a este disco algumas vezes, sempre com a maior das boas vontades, e o que ele deve ter de tão especial em todas estas vezes me escapou: é bonito, evidentemente, mas não consegui captar o que o torna tão importante na vida dessa gente toda. Talvez seja uma coisa geracional, não sei… É apenas um pequeno dissenso, em todo o caso: nos últimos dias venho escutando muitos outros discos de Mitchell e tenho me tornado grande fã dela. Os três álbuns lançados antes de Blue, a saber, Song to a Seagull, Clouds e Ladies of the Canyon, de 1968, 1969 e 1970, respectivamente, são todos ótimos. Ladies of the Canyon talvez não seja o meu favorito — os dois primeiros são mais voz & violão, o que me faz preferi-los — mas é um disco singularmente especial, é fácil reconhecê-lo: suas faixas trazem arranjos mais elaborados, muitos pianos, um clima mais complexo e introspectivo em relação ao folk de alma hippie que marcam os álbuns anteriores. O trecho final de Ladies of the Canyon, mais precisamente suas últimas três canções, é todo magnífico, e The Circle Game — com o luxo dos vocais de apoio do CSN&Y no refrão — é possivelmente minha faixa favorita de Mitchell até o momento. De acordo com o que li por aí, este disco prenuncia algumas mudanças em sua música, o que devo descobrir por mim mesmo em breve já que pretendo escutar a todos os seus discos, inclusive dar novas chances ao tão estimado Blue.
Steve Roach - Mystic Chords & Sacred Spaces
Os incontáveis discos de Steve Roach assemelham-se muito em método e forma, porém alguns conseguem um efeito mais notável sobre o ouvinte. Não preciso entrar em detalhes sobre isso, certo? Não há quem não conheça dessas traquinagens ao mesmo tempo prosaicas e miraculosas das músicas. Coloco Mystic Chords & Sacred Spaces neste grupo dos especiais. Suas mais de quatro horas de duração têm grande parcela de responsabilidade neste êxito, então depende do estoque de disposição e paciência do ouvinte poder desfrutá-lo em sua completa amplitude. Não é tão difícil, no entanto: a música desde o início impõe-se, determina logo as sensações e o recolhimento compulsório. Ficar indiferente é, creio, impossível. Sei que já gastei essa metáfora por aqui, mas devido ao seu renovado e urgentíssimo significado, vejo-me disposto a sacrificá-la um pouco mais: é música que nos retira do mundo. Há coisa mais preciosa do que isso hoje em dia?
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