Discos do mês - Abril de 2017
Fabricio C. Boppré |Imagem principal:
Texto:
Deutsches Streichtrio - Paul Hindemith: String Trios 1 & 2
Dia desses, ao chegar em casa, me senti como que protegido por anjos. E não uns anjinhos gorduchos e relapsos quaisquer cuidando para que eu não pisasse numa casca de banana ou algo besta desse tipo; provavelmente, acompanhou-me na meia hora anterior uma equipe muito atenta e qualificada, não sei se formada por cuidadores particulares que me foram especialmente designados por algum muitíssimo indulgente funcionário do departamento angelical — haja visto que, sendo ateu desde as cinco semanas de idade, sequer fiz catequese na infância — ou se eram simplesmente os anjos públicos responsáveis pelos bêbados da comarca em que moro, anjos seccionais, algo assim. Seja qual for o caso, agradeço-lhes. Eu não estava bêbado, começo esclarecendo: estava num outro estado cujas capacidades de atenção podem ficar ainda mais comprometidas do que o álcool é capaz de tornar. Eu caminhava para casa, e resolvi colocar os fones e escutar alguma coisa. Navegando pela discoteca que trazia comigo no telefone celular, encontrei um disco com algumas obras do compositor alemão Paul Hindemith, a quem eu nunca havia escutado até então. Hindemith ocupa aquele patamar intermediário dos compositores que não são de conhecimento do grande público, não possuem o status de Mozart, Beethoven ou Bach, mas tampouco são considerados artistas menores; seu nome aparece recorrentemente em textos de ou conversas com pessoas que possuem boa milhagem de aventuras no mundo da música erudita. Digamos que no mundo do rock ’n' roll, uma banda correspondente seria o Mission of Burma: se você não pára no Nirvana e nem no Sonic Youth, então uma hora você vai ouvir o Burma. De maneira análoga, se você não pára em Beethoven e nem em Stravinsky, logo você ouvirá Hindemith. Chegara então a minha hora de ouvi-lo, eu que lamento a pouca vida que terei para ouvir o tanto de música que gostaria. O disco em questão traz os dois trios de cordas que Hindemith compôs, trabalhos de 1924 e 1933, em versões gravados pelo Deutsches Streichtrio. E o que aconteceu é que eu não estava preparado para gostar tanto do que estava prestes a ouvir: o disco é ótimo, as duas peças são fantásticas! Fui capturado imediatamente pela música, pela mágica concentrada que somente esses pequenos grupos formados por instrumentos de cordas são capazes. E quando enfim cheguei ao prédio onde moro e enfiei a chave na porta de casa, percebi meio aterrorizado que tudo que havia transcorrido no espaço exterior àquele entre os dois fones enfiados em minhas orelhas (esse espaço ao mesmo tempo minúsculo e infinito ocupado por um cérebro enquanto escuta música), tudo que se passara ao meu redor durante aquela última meia hora de caminhada — em que faixas de segurança eu atravessei, diante de que pessoas eu passei, de quais ônibus desabalados passando próximos demais da calçada eu recuei, se é que o fiz — de nada disso eu me lembrava, em nada disso eu havia prestado atenção alguma enquanto caminhava e escutava o Deutsches Streichtrio interpretando os trios de Hindemith. Posso muito bem ter atravessado fora das faixas diante dos homicidas em potencial a que chamamos de motoristas e até mesmo passado pelo próprio Jesus Cristo ressuscitado andando na calçada, com a coroa de espinhos ainda enfiada na cabeça e proferindo sermões sobre amor e igualdade, sendo ignorado pelas demais pessoas por assemelhar-se a um mendicante doidão qualquer (coisa que, afinal, ele provavelmente foi em seu tempo) — e eu não reparei em nada disso! A música me abduziu completamente e todo o trânsito de pessoas e automóveis ao meu redor deslizou para algum outro lugar além do meu campo de percepção. Posso até mesmo ter passado direto por algum vira-lata sem fazer a devida catalogação mental que sempre faço dos cachorros com quem cruzo, tentando decifrar o destino da marcha acelerada e cheia de senso de propósito de uns e o que se passa na mente daqueles outros que parecem apenas observar o tempo passando deitados bem no meio da calçada, sem embaraço algum, no máximo o reflexo involuntário de recolher o rabo para que este não seja pisado por algum transeunte que se aproxima. Bem, cães nas ruas temos aos montes por aqui, não preciso lamentar ter perdido um ou outro; Jesus Cristo ressuscitado andando em Florianópolis me parece improvável… O problema mesmo são os carros. Ainda que tenha maquinalmente atravessado somente nas faixas de segurança, não são poucos os deliquentes que não sabem direito para que servem aquelas barras paralelas pintadas de branco no chão, e por isso sabe-se lá como cheguei vivo em casa. Protegido por anjos, só pode. Tenho que tomar mais cuidados com essas coisas; ateus não podem contar com anjos o tempo todo.
Mitsuko Uchida plays Schubert
Pois é, Franz Schubert de novo. Mas serei breve: Mitsuko Uchida é, para mim, a melhor intérprete das sonatas de Schubert. Já escutei muitas versões pelas mãos de muitos pianistas, mas Mitsuko é insuperável. Esse box com oito discos lançado pela Decca em 2004 traz a pianista japonesa naturalizada britânica tocando, além das sonatas, várias peças para piano solo: os Six moments musicaux, os Impromptus, entre outras. É ouro puro… Quero dizer, é muito melhor do que ouro.
Midnight Oil: Earth and Sun and Moon
Este sempre foi o meu “menos favorito” álbum do Midnight Oil. Porém, depois de revê-los em ação, uns dias atrás — o que foi precedido e sucedido pela audição de quase todos os seus discos, como ritual de preparação antes e como suplemento após o show na noite gelada de Curitiba —, e de ver reacendida uma vez mais a minha enorme paixão pela banda, acho que passei a gostar mais dele. Meu problema com o Earth and Sun and Moon sempre foi a sensação de uma dose demasiada de pompa e açúcar nas melodias e nos refrões, principalmente os refrões, muitos deles cantados a plenos pulmões por várias vozes que não economizam na grandiloquência e no aspecto hinário da coisa toda. Diesel and Dust e Blue Sky Mining eram já parte do caminho do Oil nessa direção, mas aqui houve um pouco de exagero, eu sempre pensei… É como um ápice ao qual a banda não precisava ter chegado. E provavelmente eles concordaram comigo no fim das contas, pois o disco seguinte, meu amado Breathe, tem um espírito que é quase o oposto absoluto ao de Earth and Sun and Moon. Bem, de todo modo, não sei se é a benevolência que vem com a idade ou o quê, o fato é que acabei voltando ao Earth and Sun and Moon mais de uma vez nestes últimos dias. Há uma sequência formidável entre as faixas quatro e sete, começando com a música que dá título ao disco e terminando com Drums of Heaven, série que praticamente redime tudo aquilo que vejo como excessivamente agridoce no restante do álbum. O show em Curitiba, a despeito de ter sido num teatro — com assentos e tudo mais —, foi ótimo. Boa parte do público estava lá para ouvir Beds are Burning e The Dead Heart, isso é inescapável, e a banda não deixou ninguém desamparado: nem quem apenas lembrava vagamente do refrão injetado de adrenalina de Forgotten Years ficou, e tampouco eu fiquei, depois de Kosciuszko, Only the Strong e Sell my Soul. Claro, faltou essa e aquela (e não faltou Blue Sky Mine…), mas no geral, saímos todos felizes e rejuvenescidos. Espero que não tenha sido a minha última vez num show do Midnight Oil.
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