Dying Days
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Discos do mês - Dezembro de 2016

Fabricio C. Boppré |
Discos do mês - Dezembro de 2016

Patricia Kopatchinskaja & Saint Paul Chamber Orchestra: Schubert: Death and the Maiden

Se algum dia me pedirem uma lista de discos, mesmo uma bem resumida, que tenha por objetivo servir como instrumento de convencimento ou porta de entrada para o mundo da música clássica, esse título é item absolutamente certo. O Quarteto de Cordas nº 14 de Franz Schubert, conhecido também como Death and the Maiden, é dessas obras imortais que, embora eu reconheça as diferenças fundamentais que existem entre as pessoas, não consigo conceber que alguém possa escutá-la em execução minimamente competente e depois dizer “eu não gosto dessa música”. Tal conclusão seguir-se a esta música é impossível como um ser humano respirar debaixo d’água; impossível como a Terra cessar seu movimento ao redor do sol e ficar imóvel, absolutamente inerte em meio à dança das órbitas dos outros astros todos, dança esta que quase dá a impressão de ganhar impulso por conta de músicas como esta, produzidas cá neste pálido ponto azul, como assim chamava a Terra o saudoso Carl Sagan. A obra é genial por si só, porém este disco tem ainda outras virtudes: não sei dizer o quão original é isso — é a primeira vez que ouço algo do tipo — mas aqui, a violinista austríaca Patricia Kopatchinskaja intercalou a obra de Schubert, que é dividida em quatro partes, com outras obras de outros compositores. O resultado é fantástico. Ao invés de começar o álbum com o magnífico movimento de abertura de Death and the Maiden, temos inicialmente uma breve canção folclórica, uma composição anônima que estabelece um clima leve e medieval, desarmando o espírito do ouvinte; esta é então seguida por uma outra melodia bastante diferente, vagarosa e sombria, que começa a invocar, por meio de espectros desvanecentes, o que virá a seguir… Finalmente, na terceira faixa, temos o início do quarteto de Schubert, em toda sua exuberância grave e vertiginosa e execução arrasadora de Kopatchinskaja junto com a Saint Paul Chamber Orchestra. O disco segue intercalando clímax extasiantes e entreatos de beleza doce, remissiva, meditativa, sejam parte da obra original de Schubert, ou dos outros compositores convocados, entre eles: György Kurtág, o célebre louco italiano Carlo Gesualdo e John Dowland. O álbum todo, do primeiro ao último segundo, é hipnótico e emocionante, uma experiência extraordinária que se não conseguir converter um cético quanto às belezas da música erudita, então, bem, este ser humano veio com defeito.

1999 AFCM Ensemble: Schnittke: Piano Quintet / String Trio

Alguma gravação do Quinteto para Piano de Alfred Schnittke também haveria de estar presente nesta lista. Aqui a música é circunspecta e melancólica, cheia de silêncios e pesar, uma reflexão de Schnittke à época da morte de sua mãe. Assim como creio que deve ocorrer em qualquer reflexão mais profunda sobre a morte, há momentos de angústia quase intoleráveis, tornados sons através de gritos lancinantes de violino, esse instrumento tão humano, que muitas vezes parece ser a própria voz da massa do sangue a fluir por nossas veias… Mas eles se dissipam, e dão lugar a um movimento final que é das coisas mais tocantes na história da música. Tenho várias gravações desta obra, e a que está presente neste disco da Naxos não é a minha preferida, mas cito-o aqui porque escutei-o recentemente, uma audição atenta e devotada no dia de Natal (a data foi apenas uma coincidência: minha religião é a música), e em seu tracklist há ainda uma gravação para o fantástico Trio para Cordas, outra das obras de Schnittke que me fazem tê-lo como um dos meus compositores favoritos.

Led Zeppelin - III

Mas estamos, uma vez mais, na estação do sol e de tudo enlouquecidamente vivo, e as coisas parecem evitar morrer nesta época, ou morrem discretamente, indistintas em meio a toda essa luz e reflexos ofuscantes, lágrimas e suor, e me vejo novamente às voltas com meus discos indispensáveis de verão, sendo o Led Zeppelin III um deles. Foi numa temporada de férias de janeiro, estimo que em 1994 ou 95, que por intermédio deste disco eu me tornei fã da banda, depois de um texto escrito por um dos caras do Titãs e publicado na revista Bizz — era uma coluna do tipo “discos favoritos” ou algo do tipo — me convencer a enfim ouvir um álbum inteiro do Zepelim de Chumbo, os venerados autores de certo épico místico que fazia algumas pessoas chorarem só de ouvir a flauta na introdução, mas que a mim nunca havia sensibilizado muito (trauma de tê-la ouvido pela primeira vez numa trilha-sonora de novela, provavelmente), e nem uma ou outra música escutadas aqui e ali haviam operado em mim coisa alguma em relação ao Led, que era a forma íntima como todos se referiam à banda… Porém era mais do que passada a hora de ouvi-los melhor, dar-lhes uma chance mais justa, e o texto do titã era bom, me deixou intrigado toda aquela história da composição do disco ter ocorrido num local isolado sem água e eletricidade nos ermos duma floresta britânica. Foi então este o disco escolhido para algo que eu ainda não sabia se seria uma iniciação ou um desprezo oficial e definitivo; por volta do Natal eu aluguei o CD, gravei-o numa fita K7, coloquei-a na caixinha junto das outras escolhidas para formarem a trilha-sonora daquele verão que se iniciava e no qual eu mal contabilizava uma década e meia de vida, e tocamos para a casa de praia onde passávamos as férias, eu e minha família. E acho que foi só o que eu escutei, diariamente, por semanas, nos intervalos dos banhos de mar e do futebol nos gramados da vizinhança, dos livros do Julio Verne e da Agatha Christie e dos pratos de macarrão com carne moída que minha mãe fazia às toneladas para dar conta dos apetites meu e do meu irmão e do ocasional outro pirralho que aparecesse por lá para filar um rango. Foi, definitivamente, uma iniciação, e um dos capítulos mais marcantes das minhas memórias musicais, o III permanecendo até hoje meu disco favorito do Led, tranquilo, envolto em densa camada de idílio e sinestesia. Mesmo passados mais de 20 anos daquele verão, é só a temperatura começar a subir — se bem que hoje em dia sobe demais; um termômetro marcar 38 graus nesta cidade, naquela época em que escutei pela primeira vez este disco, era algo impensável, ou pelo menos raríssimo, seria o ápice dos píncaros de um verão excepcionalmente quente; hoje em dia é banal, e de fato, vi um hoje (dia 27 de dezembro) de manhã —, é só o calor estabelecer-se, uma folga curta do trabalho e das preocupações da vida adulta, o primeiro mergulho no mar e o sal na pele, e pronto, meus mecanismos fisiológicos, que parecem funcionar não somente à base de alimentos e oxigênio, mas também de música, disparam Immigrant Song na minha cabeça, e Gallows Pole e That’s the Way, e Celebration Day com seu esfuziante “My, my, my, I'm so happy!”. Bem-vindo, 2017! Nas atuais circunstâncias, parece-me que o máximo que podemos lhe pedir é que sejas uma pausa no afluxo de horror corrente, mas vai que este sol incinerante destes tristes trópicos desperte também alguma outra coisa que ande adormecida, murcha, inerte, que provoque finalmente as reações nas quais, neste ano que passou, aprendemos a não ter mais esperanças…

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